Music, o mergulho de Madonna no experimentalismo eletrônico


Madonna reinventou sua carreira com Ray of Light (1998), após sobreviver à década de 1990, onde o rock alternativo dominou as vendas. Os dois álbuns lançados nessa década pela Rainha do Pop são ótimos. Erotica (1992) trouxe o sexo para o centro da cultura pop, foi amparado pelo polêmico livro SEX e é um dos trabalhos mais marcantes da artista. Bedtime Stories (1994) é um disco mais orgânico, com bastante baladas e o refinamento pop caracterísco, como mostraram "Human Nature" e "Bedtime Story". 
Longe de serem considerados fracassos comerciais – Erotica vendeu 6 milhões e Bedtime Stories chegou a 8 milhões de cópias em todo o mundo -, tampouco chegaram perto dos números avassaladores dos álbuns anteriores, como os 15 milhões de discos vendidos por Like a Prayer (1989).

Ray of Light corrigiu a rota ao apresentar uma artista renovada e inspirada pela prática da cabala, e que atualizou a sua música em uma parceria notável com o produtor William Orbit. O resultado foram faixas criativas e cheias de frescor como “Frozen” e a canção que batizou o disco, que mostraram que Madonna ainda era relevante em uma época dominada por novas vozes femininas como Britney Spears e Christina Aguillera. Isso foi traduzido nas vendas, superiores a 16 milhões de cópias. 

Após o sucesso, tanto de público quanto de crítica, que Ray of Light recebeu, a ideia de Madonna era embarcar em uma tour planetária pelos próximos anos. Mas a gravadora, empolgada pelo ótimo momento criativo da cantora, indicou que o próximo passo deveria ser um novo álbum. De forma quase simultânea, a artista descobriu que estava grávida de Rocco, fruto de seu relacionamento com o diretor inglês Guy Ritchie (Sherlock Holmes, Snatch – Porcos e Diamantes e Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes). Madonna retornou então para o estúdio repetindo a parceria com Orbit, mas trazendo um novo elemento para a mistura: o produtor francês Mirwais Ahmadzaï. O resultado foi Music (2000), álbum com uma sonoridade mais experimental que uniu a música eletrônica com elementos de house, funk, country, folk e rock. 

Sendo o ícone pop que sempre foi, Madonna também reformulou sua imagem em Music. Saiu o visual com toques místicos e orientais de Ray of Light, e em seu lugar surgiu um figurino inspirado no universo country tendo o jeans como personagem principal, além de chapéus, botas de caubói e fotos mostrando a cantora em locações que se assemelham a celeiros cheios de feno, tudo adornado por elementos gráficos que reforçam a associação com o country. Isso fica claro logo na capa do álbum, que traz o título do trabalho aplicado em uma forma semelhante à fivela de um cinto, com direito a um cavalo na arte.


Liricamente, existe um confronto entre Ray of Light e Music. A espiritualidade do primeiro contrasta com os temas terrenos do segundo. Enquanto o disco de 1998 mostrou uma Madonna envolta em misticismo, o álbum lançado em 2000 trouxe a musa novamente para o chão, lado a lado com seus fãs em uma pista de dança. Esse contraste é apenas um dos elementos que coloca ambos os trabalhos em uma prateleira superior na discografia da Rainha do Pop.

O andamento hipnótico e minimalista de “Music” abre o disco, e é antecedido por uma voz pedindo para o DJ soltar o som. A canção foi um enorme sucesso e se transformou em um dos maiores clássicos do Madonna, com um refrão grudento que foi cantado à exaustão em todo o planeta. Percebe-se desde o início o aprofundamento das influências contemporâneas de música eletrônica mostradas no álbum anterior e que foram conduzidas por William Orbit, aqui intensificadas pelas mãos de Mirwais Ahmadzaï. Era Madonna deixando claro desde o início que não só seguia relevante, como também continuava sendo uma grande lançadora de tendências. “Impressive Instant” vai pelo mesmo caminho, porém com uma abordagem mais tradicional e sem o apelo pop contagiante de “Music”, além do uso excessivo de autotune, deixando a voz da cantora super metalizada. O curso é corrigido com “Runaway Lover”, onde o toque de Midas pop que Madonna sempre teve é atualizado, ainda que focado mais na busca pelo sucesso nas pistas de dança do que moldado para as rádios.

“I Deserve It” diminui o ritmo e é a primeira balada do álbum, onde o flerte com o country fica evidente. Com belas linhas vocais conduzidas por batidas e efeitos eletrônicos, além de um loop de violão, é uma música muito agradável e que poderia ter sido lançada como single. Já “Amazing”, que foi um dos quatro singles do álbum junto com “Music”, “Don’t Tell Me” e “What It Feels Like for a Girl”, é uma das melhores músicas da carreira de Madonna e traz até mesmo guitarras encaixadas em seu caldeirão musical. Essa faixa conta também com uma ótima performance vocal, com Madonna variando o estilo de canto ao longo da canção.

A partir de sua metade, o álbum diminui o ritmo e entrega uma sequência de baladas, o que, de certo modo, conversa com o que ouvimos em Bedtime Stories (1994). “Nobody’s Perfect” vai na mesma linha de “I Deserve It”, mas com uma presença maior de efeitos eletrônicos e, mais uma vez, com o uso além da conta do autotune. Mas a grande balada do álbum é “Don’t Tell Me”, onde essa união entre o orgânico vindo do country e os recursos de estúdio trazidos pela eletrônica funcionam de forma perfeita. Mais uma grande canção, e outra que tocou muito mundo afora. “What It Feels Like for a Girl” é, de certa forma, a faixa mais adulta do disco, com uma letra que fala sobre as dificuldades diárias de ser uma mulher em um mundo conduzido por uma perspectiva masculina. “Paradise (Nor For Me)” é outra das grandes canções do disco, uma balada com um certo apelo lisérgico e que é uma das mais belas e, ao mesmo tempo, sensuais, composições de Madonna. O momento contemplativo chega ao fim com “Gone”, a mais orgânica das faixas de Music, e que marcou o encerramento da edição original.


Porém, já no seu lançamento Music veio com uma faixa bônus: a versão para “American Pie”, clássico da canção norte-americana gravada por Don McLean em 1971. A releitura de Madonna foi incluída na trilha sonora de The Next Best Thing (Sobrou Pra Você, no Brasil), comédia romântica em que a cantora contracenou com o ator britânico Rupert Everett. Madonna reformulou totalmente a música, incluindo uma diminuição na letra, o que resultou em uma gravação com pouco mais de 4 minutos e meio, em contraste com quase 9 minutos da versão original de McLean. O tratamento dance-pop reapresentou “American Pie” para o mundo, e o cover se transformou em um dos maiores hits da primeira metade da década de 2000.

Music foi um sucesso planetário. O álbum estreou em primeiro lugar em 23 países e vendeu mais de 3 milhões de cópias apenas na primeira semana, superando a marca de 11 milhões de discos em todo o mundo. O trabalho mostrou que Madonna continuava tendo um impacto gigantesco não só na indústria musical, mas também na cultura pop, e, com o passar dos anos, se transformou em um dos álbuns mais cultuados de sua discografia.


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