New age, cabala e misticismo: a reinvenção de Madonna em Ray of Light


A maternidade transformou Madonna. O nascimento de sua primeira filha, Lourdes Maria, em outubro de 1996, foi a realização de um sonho para a artista, e essa transformação se deu em todas as áreas de sua vida. O interesse pelo misticismo oriental e pela cabala surgiu nessa época e se refletiu no seu sétimo álbum, Ray of Light, lançado no final de fevereiro de 1998.

O direcionamento musical do novo disco foi conduzido pela parceria de Madonna com o produtor inglês William Orbit, e o resultado foram canções que uniram a música eletrônica dançante que sempre marcou a carreira da artista com elementos de pop, rock, new age, música psicodélica e música oriental, em um caldeirão sonoro que é um dos mais complexos que a Rainha do Pop já deu ao mundo. A voz de Madonna soa mais grave e profunda, contrastando com o tom agudo do início de carreira, e as letras exploram temas místicos inspirados não só pela cabala, mas também pelo budismo, hinduísmo e yoga.

Ray of Light, ao ser comparado com os seis trabalhos anteriores de Madonna, possui um som muito mais experimental e desafiador. O disco não entrega gemas pop como “Like a Virgin”, “Material Girl” ou “True Blue”, e nem clássicos instantâneos como “Like a Prayer” ou “Vogue”. Sua audição é mais transcendental e menos urgente, o que transforma o álbum no primeiro trabalho “adulto” da artista e no ponto de virada de sua carreira, deixando para trás a inocência e as provocações dos anos 1980 e 1990 e mergulhando cada vez mais em questões políticas e sociais, como o conceitual American Life (2003) mostraria alguns anos depois, ao criticar ferozmente o materialismo, o superficialismo e armamentismo presentes de forma profunda na sociedade americana.

Ao invés de abrir o disco com um single arrasa-quarteirão como de costume – “Lucky Star”, “Papa Don’t Preach” e “Erotica” são exemplos disso -, Madonna apresenta Ray of Light para os ouvintes com uma balada que traz elementos de drum and bass e trip hop chamada “Drowned World/Substitute of Love”. Uma canção muito bonita, e que também abriu os shows da Drowned World Tour em 2001, mas que já mostrava que algo estava diferente. O toque pop inconfundível surge em “Swin”, um pop rock com andamento mais uma vez cadenciado e com excelente performance vocal. A música-título e um dos maiores hits do álbum vem a seguir, com sua introdução feita na guitarra e ritmo inspirador. Uma das faixas mais fortes de todo o catálogo de Madonna, apresenta de vez as cartas do álbum e possui um refrão antológico, cantado até hoje pelo público sempre que faz parte do setlists dos shows. As linhas vocais de Madonna merecem destaque, com subidas de tom que mostram o poder de uma das maiores vozes da história do pop.


Outro acorde de guitarra introduz a próxima faixa, a sensual “Candy Perfume Girl”, um pop delicioso e uma das gemas escondidas no catálogo da cantora. “Skin” une a aura mística do álbum com a música eletrônica dos anos 1990, época em que o techno dominou as pistas, porém sem excessos e com uma elegância elogiável. “Nothing Really Matters” talvez seja a faixa de Ray of Light que mais converse com a produção anterior de Madonna, porém com uma abordagem mais madura do que a presente em canções como “Express Yourself” e “Deeper and Deeper”. “Sky Fits Heaven” vai na mesma linha de “Skin”, flertando com o techno de maneira super concisa.

Madonna mergulha na música indiana em “Shanti/Ashtangi”, cuja inspiração veio de um mantra milenar. Uma das melhores canções de Ray of Light, possui andamento e linhas vocais hipnóticas e abre o caminho para “Frozen”, primeiro single e o grande hit do álbum. Um dos maiores clássicos da carreira de Madonna, é também um dos grandes exemplos da criatividade da Rainha do Pop, com um trabalho de composição brilhante. O arranjo, com uma batida oriental e instrumentação minimalista e certeira, mostra o quanto William Orbit foi fundamental para o álbum. Uma música absolutamente incrível, e que mantém seu frescor um quarto de século após o seu lançamento.

O álbum caminha para o seu terço final com “The Power of Good-Bye”, uma balada convencional que perde força quando comparada com as grandes baladas que Madonna possui em seu catálogo, como “Live to Tell”, “Rain” e “Take a Bow”. Já “To Have and Not to Hold”, apesar de seguir a mesma receita, se destaca pela aura mística e esotérica e pelo mantra leve do refrão. “Little Star” vai novamente por um caminho mais convencional e é um tanto esquecível. “Mer Girl” encerra o álbum de forma bem introspectiva, com uma letra que amarra todo o sentimento mostrado no disco.

Ray of Light alcançou vendas superiores a 16 milhões de cópias globalmente e renovou a imagem e a música de Madonna, com uma reinvenção profunda em sua sonoridade através de uma abordagem inovadora, corajosa e experimental raramente vista em uma artista pop. Apontado frequentemente como o seu melhor álbum, é uma obra poderosa e fascinante, cuja magia está na união cirúrgica entre a inovação musical e o misticismo lírico.


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