Quadrinhos: A Mulher do Mágico, de François Boucq e Jerome Charyn (2024, Comix Zone)


A Mulher do Mágico
é uma HQ singular. A obra, que é uma adaptação do romance homônimo do escritor norte-americano Jerome Charyn feita pelo artista francês François Boucq, foi publicada em 1986 na França e marcou a primeira colaboração entre os dois, que produziriam juntos mais três títulos - Boca do Diabo, Little Tulip e New York Cannibals, os dois primeiros publicados no Brasil pela Comix Zone e o último já prometido pela editora.

O que lemos em A Mulher do Mágico é uma história que equilibra um elemento artístico e abstrato – o surrealismo – com ingredientes de uma realidade não tão agradável de se ver. Acompanhamos a história de Edmond, um mágico de grande talento que vive uma relação com uma mãe e sua filha pré-adolescente, chamada Rita. Essa relação é claramente de abuso do ponto de vista das duas mulheres, e de prazer e exploração na perspectiva do mágico. Ele coloca mãe e filha em seu espetáculo e sai em turnê apresentado suas habilidades pela Europa ao longo dos anos, enquanto o tempo vai passando para a mãe – que envelhece e vai perdendo o seu encanto – e também para a filha – que perde o ar de menina e se transforma em uma bela mulher. O interesse de Edmond vai além da relação profissional e mergulha no prazer, com o homem satisfazendo suas fantasias e desejos sexuais com a mãe enquanto espera a garota alcançar a maioridade.

Tudo isso é embalado em uma HQ que apresenta elementos de surrealismo fantástico nas ilustrações, sejam elas usadas para extravasar os desejos de Edmond ou para exemplificar os traumas de Rita. O trabalho de arte de Boucq é de encher os olhos, equilibrando um traço realista com elementos cartunescos que resultam em uma identidade bastante própria, que ele refinaria com o passar dos anos. O roteiro de Charyn é denso e requer atenção do leitor, pois coloca na mesa questões complexas e discute como elas impactam as vidas dos envolvidos ao longo dos anos.


Dividida em quatro capítulos, a HQ acompanha Rita desde menina até a idade adulta, quando ela deixa a Europa para trás e vive em Nova York tentando reconstruir o seu mundo, ao mesmo tempo em que tenta se encaixar em uma nova realidade. Neste ponto, a trama dá uma virada surpreendente e vai por um caminho inesperado, mas que, dentro do contexto vivido pelos personagens, não só é absolutamente crível como mostra as consequências dos abusos sofridos por Rita. O fechamento, com uma dose maior de surrealismo e uma conclusão agridoce, equilibra melancolia e beleza.

A Mulher do Mágico entrega doses de erotismo e uma arte acima da média, embaladas por um roteiro que não facilita o trabalho para o leitor e precisa ser destrinchado e interpretado sem pressa. Uma HQ que passa longe da linha de montagem costumeira dos quadrinhos norte-americanos e que, como todo bom quadrinho europeu, propõe discussões mais densas sobre a sociedade e a própria humanidade.

A edição da Comix Zone vem em capa dura no formato 21x28,5, tem 88 páginas em papel couchê, foi traduzida por Flávia Yacubian e apresenta a excelência gráfica e o bom gosto estético padrão da editora, além de manter em sua capa a identidade apresentada nas duas outras HQs de François Boucq e Jerome Charyn publicadas pela editora.

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