Quadrinhos: Os Filhos de El Topo, de Alejandro Jodorowsky e José Ladrönn (2024, Comix Zone)


Os Filhos de El Topo
é uma das maiores críticas do escritor chileno Alejandro Jodorowsky à religião – à todas elas, importante frisar. O autor abordou o assunto frequentemente em sua carreira, gerando obras aclamadas dos quadrinhos como Borgia, O Papa Terrível e Juan Solo, e aqui retorna ao tema de maneira brilhante e desconcertante. Trabalho mais recente de Jodorowsky, Os Filhos de El Topo foi publicado em três volumes na Europa entre 2016 e 2022, reunidos na edição integral que a Comix Zone lançou no mercado brasileiro em capa dura, formato europeu, 232 páginas e com tradução de Thiago Ferreira.

A HQ é, na verdade, uma sequência de El Topo, filme de 1970 escrito, dirigido e estrelado por Jodorowsky, uma espécie de faroeste surrealista que alcançou status de cult e narra a trajetória de um pistoleiro que se transforma em um santo. Meio século depois, ele retomou a história. E o mais impressionante de tudo: Os Filhos de El Topo foi escrito pelo chileno no período entre os seus 87 e 93 anos. Em plena velhice, ele provou estar mais afiado do que nunca.

O quadrinho conta a história dos dois filhos do personagem principal. Caim, abandonado pelo pai, foi marcado por seu progenitor, que lhe aplicou uma maldição proibindo as pessoas de olharem e falarem com ele, o que faz com que todos virem as costas e fiquem em silêncio sempre que Caim está em um local. Já Abel foi criado pela mãe e é doce, inocente e puro, mas, ao perdê-la, pede ajuda ao irmão para enterrá-la junto ao pai, no santuário onde ele descansa. Os dois começam então uma jornada repleta de violência e personagens peculiares, como uma voluptuosa e bela mulher chamada Lilith e o capitão de um exército de querubins que possui hábitos alimentares bastante incomuns. Para quem conhece a história bíblica, não é difícil descobrir o destino final de Caim e Abel.

O roteiro, como sempre, é muito bem escrito, e promove transformações substanciais nos personagens ao mesmo tempo em que não economiza em momentos de violência, choque, nudez e outros elementos costumeiramente presentes nas obras de Jodorowsky. 

A arte de José Ladrönn é um capítulo à parte, começando pelo fato de a maioria das páginas da HQ serem divididas em três quadros widescreen, acentuando ainda mais a narrativa épica e, literalmente, cinematográfica. O traço é primoroso, com os personagens carregando expressões autênticas e detalhadas, enquanto os cenários e paisagens são belos e carregados de autenticidade. As cores, também assinadas por Ladrönn, são vivas e trabalham a favor da narrativa, com o artista conseguindo traduzir o roteiro de Jodorowsky em ilustrações que nos fazem crer na história e mergulhar em uma experiência rica e transformadora, que leva a um questionamento sobre o papel da religião e nossas próprias crenças.

Os Filhos de El Topo proporciona uma leitura fantástica e se coloca entre as principais trabalhos do artista chileno. Trata-se não apenas de um dos melhores quadrinhos publicados no Brasil em 2024, mas, sem dúvida alguma, em uma das mais excepcionais HQs que chegaram ao mercado brasileiro no século XXI. E, acima de tudo, comprova o quão único é Alejandro Jodorowsky, que do alto dos seus mais de 90 anos se mostrou capaz de produzir uma obra tão confrontadora, densa e crítica como esta.


Comentários