Quadrinhos: O Céu na Cabeça, de Antonio Altarriba, Sergio García Sánchez e Lola Moral (2024, Comix Zone)
O êxodo africano é uma das maiores tragédias humanitárias do século XXI. Milhões de pessoas em condições de vida que um ser humano jamais deveria experimentar, fugindo de diversos países do continente em busca de uma vida melhor na Europa e em outros destinos, enfrentando desafios como a própria jornada em si e a exploração de bandidos, escravagistas e muito mais, incluindo a própria morte por naufrágio nos mares próximos ao destino final para aqueles que conseguiram chegar tão longe. Dos milhões que partem em busca do sonho de uma vida melhor, poucos chegam lá, e raros são os que efetivamente conseguem reconstruir suas vidas em um novo país.
O Céu na Cabeça é um quadrinho sobre isso. Escrito por Antonio Altarriba, ilustrado por Sergio García Sánchez e colorizado por Lola Moral, foi publicado em 2023 no Velho Mundo e desde então recebeu vários prêmios, incluindo o de Melhor Álbum no Festival de Angoulême em 2024. Agora, a HQ chega ao Brasil pela Comix Zone em uma edição em capa dura, formato europeu e 144 páginas em papel couchê de alta gramatura, com tradução de Flávia Yacubian.
A HQ proporciona uma leitura incômoda e chocante, porque mostra uma realidade muito distante e que beira o inacreditável para quem vive em um país civilizado como o Brasil, que mesmo com os seus problemas parece um paraíso perto do que Nibek e Joseph, os personagens principais, enfrentam desde muito jovens. Exploração infantil, violência sexual, amedrontamento cotidiano, escravidão e enormes doses de violência marcam as páginas, que trazem um retrato do que de pior o ser humano pode fazer. Algumas passagens são tão fortes que é precisa respirar fundo para seguir com a leitura - e, infelizmente, são relatos reais baseados nas pesquisas e vivências de Altarriba. A ficção é apenas o fio condutor da história do roteirista, que é construída através de fatos que realmente aconteceram e continuam ocorrendo.
O grande destaque de O Céu na Cabeça é a arte. As ilustrações de García Sánchez possuem um estilo muito próprio e marcante, que em certos momentos chegou a me lembrar, ainda que de forma sutil e apenas referencial, o clássico quadro Abaporu, pintado pela brasileira Tarsila do Amaral em 1928. As páginas possuem diagramações que fogem do convencional, com elementos se alternando em tamanho e conduzindo a leitura de forma bastante diferente da que estamos acostumados. Diversas páginas funcionam quase como quadros e poderiam ser tranquilamente expostas em galerias de arte. Há estilização aos montes, e esse recurso funciona para tornar a narrativa muito mais forte. As cores de Lola Moral ampliam o poder da arte de Sánchez através de uma paleta suave e em tons pasteis que dá uma identidade bastante particular para a HQ.
O Céu na Cabeça é daqueles quadrinhos que extrapolam o nicho e vão muito além das histórias convencionais habituais da nona arte. Em certos aspectos, tanto pelo tema abordado quanto pelo estilo artístico, pode até mesmo afastar leitores acostumados apenas com o mundo multicolorido dos super-heróis, o que seria uma pena. Trata-se de uma leitura altamente recomendada para todo mundo que busca saber mais sobre uma das maiores tragédias humanas deste século, através de um relato que não esconde do leitor os detalhes mais sórdidos e perturbadores de todo o contexto que aborda.
Excelente em todos os níveis, e mais uma publicação ótima da Comix Zone neste ano de 2024.
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