Let It Bleed (1969) não é apenas o álbum que fecha a década de 1960 para os Rolling Stones: é o disco que captura, com precisão quase assustadora, o espírito esfarelado daquele período. Violência política, desencanto social, tragédias culturais e o fim da utopia hippie pairavam no ar. Os Stones absorveram tudo isso e devolveram em forma de música bruta, carregada de urgência e profundidade emocional.
Quando Let It Bleed começou a ser gravado, Brian Jones estava cada vez mais distante criativamente, lutando contra dependências químicas e problemas pessoais. As sessões se estenderam enquanto Jones perdia espaço e Keith Richards assumia mais protagonismo. Jones ainda aparece em faixas pontuais — em papéis menores, quase simbólicos — mas não teria tempo de ver o álbum lançado. Ele morreria meses antes do lançamento, em julho de 1969. Mick Taylor, recém-chegado e cheio de vitalidade, também aparece no álbum, contribuindo principalmente com guitarras adicionais e ajudando a pavimentar a sonoridade elegante e sofisticada que marcaria a década seguinte da banda. Entre a queda de Jones e a ascensão de Taylor, Let It Bleed nasceu em uma zona cinzenta — exatamente o ambiente que alimenta sua força.
O disco começa com “Gimme Shelter”, talvez a música que melhor traduz o clima apocalíptico do finzinho dos anos 1960. O riff denso de Richards soa como um aviso. A performance da vocalista Merry Clayton, rasgando linhas vocais em um take visceral gravado no meio da madrugada, transforma a faixa em pura combustão emocional. Nada no rock antes disso tinha soado tão urgente, tão ameaçador e tão brilhante. A partir dessa abertura, entende-se que Let It Bleed não é um disco comum, mas sim um recorte cultural.
Os Rolling Stones sempre beberam da fonte do blues, mas aqui o mergulho é mais profundo, mais convicto, mais familiar. A versão de “Love in Vain”, do lendário Robert Johnson, ganha contornos dolorosamente melancólicos com a adição de mandolim. Já “Midnight Rambler” funciona como um conto macabro em forma de música: lento, teatral, cheio de pequenas explosões instrumentais, quase como se a banda encenasse um ritual no estúdio. Esses momentos são a prova de que a banda havia encontrado seu DNA definitivo: misturar tradição e modernidade com um senso de identidade que já não devia nada a mais ninguém.
Faixas como “Let It Bleed” e “Live With Me” ilustram outro lado do álbum: a mistura de irreverência, humor ácido e sensualidade crua que sempre fez parte do imaginário dos Stones. Há aqui uma qualidade meio desordenada, meio libertina, mas sempre sustentada por grooves impecáveis e performances seguras de todos os envolvidos, especialmente um Charlie Watts afiadíssimo e um Keith Richards guiando tudo com segurança descontraída.
E então vem “You Can’t Always Get What You Want”, uma das peças mais ambiciosas da banda. Coral infantil, arranjo orquestral, melodia épica e uma construção gradual que culmina em uma catarse emocional. É uma música que transcende o rock e conversa diretamente com a cultura da época: o título virou uma espécie de epitáfio involuntário da década de 1960.
Let It Bleed fecha não apenas uma fase dos Rolling Stones, mas toda uma era da música. Ele antecipa o som mais pesado, seco e direto que a banda aprofundaria nos anos 1970, uma década em que dominaria o rock mundial com absoluta autoridade. O álbum figura constantemente em listas de melhores discos da história, e não é exagero dizer que representa um dos pontos de maturidade artística dos Stones. É música enraizada, mas expansiva. Tradicional, mas ousada. Crua, mas sofisticada. Um equilíbrio raro, quase místico, que poucas bandas conseguiram alcançar com tamanha naturalidade.
Décadas depois, Let It Bleed permanece um testemunho sonoro do fim da inocência e da consolidação dos Rolling Stones como a maior banda de rock que ainda estava por vir. Um clássico absoluto, desses que atravessam gerações e continuam encontrando novos ouvintes, sempre com a mesma força.


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