G N’ R Lies (1988) é um disco estranho na história do Guns N’ Roses, e justamente por isso ele nunca deixou de ser fascinante. Nascido mais como uma solução de prateleira do que como um projeto artístico pensado do zero, o álbum combina o EP Live ?! Like a Suicide com quatro faixas inéditas acústicas. O resultado é um registro de transição que captura a banda em um momento raro: entre o impacto avassalador de Appetite for Destruction (1987) e a grandiosidade operística que viria nos Use Your Illusion (1991).
A primeira metade, formada pelas faixas supostamente “ao vivo”, sempre carregou aquela aura de mito urbano. Hoje já se sabe que não há show nenhum ali, e sim gravações de estúdio com plateia adicionada depois — um truque comum nos anos 1980, mas que no caso do Guns funcionou como parte de sua construção de imagem. “Reckless Life”, “Nice Boys” (cover da banda australiana Rose Tattoo) e “Move to the City” são explosões de adrenalina que mostram a banda ainda crua, rápida e perigosa, mas já com a precisão cirúrgica que viria a defini-la. O ponto alto desse bloco é a versão incendiária de “Mama Kin”, homenagem ao Aerosmith que revela o quanto Steven Tyler e companhia eram farol estético e espiritual para Axl e sua turma.
Mas é no lado acústico que Lies realmente encontra sua força. “Patience” virou um clássico instantâneo, e com razão. É uma música que não precisa de distorção ou velocidade para mostrar o poder melódico do Guns N’ Roses. A interpretação de Axl é emocional sem ser exagerada, e a linha de assobio que abre a faixa é um daqueles detalhes que grudam na memória e definem uma época. Já “Used to Love Her” traz a veia sarcástica e quase country do grupo, enquanto “You’re Crazy” ganha nova vida ao ser reinterpretada em versão mais seca, revelando nuances que passavam despercebidas na gravação de Appetite.
E então chegamos à sombra grande demais para ser ignorada: “One in a Million”. A faixa é musicalmente interessante, com uma construção acústica forte e uma interpretação intensa de Axl. Mas sua letra — marcada por termos racistas, xenófobos e homofóbicos — faz dela uma cicatriz incômoda na discografia da banda. Não adianta dourar a pílula: “One in a Million” envelheceu mal desde o primeiro dia, e a decisão da banda de retirá-la de reedições recentes diz muito sobre o peso que ela carrega. Mais do que polêmica, a faixa é um lembrete de como o Guns, no auge de sua obsessão com autenticidade “bruta”, às vezes ultrapassava limites que não deveriam ser ultrapassados.
Apesar disso — ou talvez justamente por causa disso — G N’ R Lies é um documento importante. Ele captura a dualidade do Guns N’ Roses: agressivo e vulnerável, sujo e melódico, arrogante e talentoso. Não é um grande álbum no sentido tradicional. Não tem unidade estética, não foi pensado como obra completa e dura pouco mais de meia hora. Mas é um disco que mostra uma banda em movimento, tentando descobrir qual seria seu próximo passo em meio ao caos crescente que a cercava.
Lies funciona como um instantâneo de uma fase que durou pouco, mas deixou marcas profundas. É o Guns N’ Roses entre dois mundos: ainda preso ao espírito de rua do início, mas já flertando com o gigantismo que tomaria forma em 1991. Um registro imperfeito, controverso e essencial, exatamente como a banda sempre foi.
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