Há nomes que carregam peso histórico. Metal Hurlant é um deles. Criada em 1975 por Jean Giraud (Moebius), Jean-Pierre Dionnet e Philippe Druillet, a revista revolucionou a linguagem dos quadrinhos ao fundir ficção científica, filosofia e erotismo com uma estética ousada e adulta. Quase meio século depois, a Mythos Editora resgata esse espírito com uma edição que chega imponente: 396 páginas em formato grande e acabamento luxuoso, reunindo as histórias dos volumes 1 e 2 lançados pela Humanoids nos Estados Unidos em 2011.
Antes de tudo, é importante entender o que temos aqui. Não se trata de uma reedição direta da Metal Hurlant francesa clássica dos anos 1970, mas sim da fase moderna publicada entre 2002 e 2004, um revival que tentou reinterpretar o conceito original com autores contemporâneos de diferentes países. A Mythos reuniu esse material num único tomo, o que significa que, em termos de conteúdo, estamos diante da mesma coletânea lançada pela Humanoids no início da década passada.
O volume é uma verdadeira antologia: trinta e cinco histórias curtas, cada uma explorando um recorte do fantástico — ficção científica, horror, distopia e até sátira social. Os nomes presentes impressionam: Kurt Busiek, Geoff Johns, Guy Davis, Ryan Sook, Fred Beltrán, Richard Corben, entre outros. Há roteiros precisos e artes que beiram o deslumbrante, como as experimentações cromáticas de Beltrán ou o traço grotesco e hipnótico de Corben.
A diversidade é, ao mesmo tempo, força e fraqueza desta antologia. A leitura flui como um álbum de rock progressivo com múltiplas faixas compostas por músicos diferentes: há momentos de pura genialidade e outros que soam datados ou excessivamente conceituais. Ainda assim, o conjunto revela um ponto em comum: o desejo de usar as histórias em quadrinhos como lente para questionar o humano, algo que sempre esteve no coração da Metal Hurlant original.
A edição brasileira chega também num momento simbólico. Em tempos de saturação de franquias e fórmulas prontas, revisitar uma publicação que defendia a experimentação e a liberdade artística é quase um ato de resistência. A Metal Hurlant dos anos 2000 não tinha a ousadia anárquica da original, mas ainda trazia algo raro: a tentativa sincera de pensar o futuro com imaginação e ambiguidade, em vez de apenas com efeitos visuais.
A publicação da Metal Hurlant pela Mythos Editora proporciona aos leitores brasileiros acesso a uma peça de valor histórico e artístico. Um compêndio de ideias, estilos e visões que, mesmo com altos e baixos, captura o espírito inquieto que fez da revista um marco. Não é uma leitura linear — é uma experiência de fragmentos e vislumbres de mundos possíveis.
Para quem busca entender de onde veio muito do que hoje chamamos de “quadrinho adulto”, este é um documento essencial. Para quem apenas quer boa ficção científica, é um mergulho desigual, mas fascinante.
Um lançamento corajoso e necessário, que reabre o diálogo entre o passado visionário e o presente que ainda tenta alcançá-lo.



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