Jon Lord e a primeira vez em que ouvi Deep Purple

A morte de um músico como Jon Lord mexe com a gente. Ao ler a notícia de que o eterno tecladista do Deep Purple havia falecido, fiquei trêmulo e com um sentimento de vazio. Foi quase como se eu houvesse perdido alguém da minha família, um amigo próximo. 


A perda de Lord me fez pensar sobre como conheci o Deep Purple. Fucei nas teias de aranha da memória e encontrei, lá no fundo, a minha experiência com a banda. Eu era um adolescente espinhudo e com alguns fios de barba na cara (que, apesar de serem ridículos e me deixarem com um aspecto felino, ostentava com orgulho) vivendo em uma cidade no interior do Rio Grande do Sul durante a década de 1980. Uma cidade pequena, com pouco mais de 10 mil habitantes, onde até hoje residem os meus pais (para os curiosos ela se chama Espumoso, fica no norte do estado e está a uns 250 km de Porto Alegre).

Ouço música e coleciono discos desde os meus 14 anos. Naquela época, devia ter uns 16, no máximo, e disputava com um amigo para ver quem tinha mais discos em toda a cidade. Viajávamos juntos frequentemente para Passo Fundo (cidade próxima onde alguns anos mais tarde moraria e faria faculdade) para comprar novos LPs. Havia uma loja lá, chamada Bibo Som, que era a nossa meca sonora. Lembro perfeitamente do lugar: uma esquina, próxima a um supermercado (Zaffari, presente em praticamente todas as cidades gaúchas), onde você tinha que subir uma breve escada para entrar em um mundo repleto de sons maravilhosos. Foi na Bibo que ouvi pela primeira vez diversas bandas e onde deixei grande parte da grana que ganhei na minha adolescência.

Era uma espécie de competição, amistosa e agressiva ao mesmo tempo. Enquanto eu já tinha um ar curioso e procurava sons dos mais variados gêneros - apesar de estar descobrindo o hard rock e o heavy metal já ficava maravilhado com coisas como The Cure, por exemplo -, esse meu amigo, o Cristian, curtia mais hard, principalmente aquele com uma pegada mais oitentista, que era o que rolava na época.

E, depois de fazermos as nossas compras periódicas, visitávamos um ao outro e emprestávamos LPs para conhecermos novos sons. Numa dessas visitas à casa do Cris ele me disse cheio de orgulho que tinha umas bandas novas para me mostrar. A coleção dele, como a minha, ficava guardada em caixas dentro de nossos quarto, mas, nesse caso, os discos que ele queria mostrar para mim estavam dentro do guarda-roupa, lá no fundo, como que em um lugar secreto cujo acesso era permitido para poucos. Ele meteu a mão lá dentro e saiu com um punhado de LPs. Lembro apenas de dois: Holy Diver, do Dio - que já havia ouvido por cima - e um álbum duplo com capa marrom que ele anunciou com toda pompa: “Isso aqui é demais, você vai adorar”.




Como você já deve estar sacando, o disco em questão era o Made in Japan, duplo lançado pelo Deep Purple em 1972 e frequentemente apontado como um dos melhores discos ao vivo de todos os tempos. Levei o LP para casa - não antes sem deixar alguns discos meus para ele ouvir, como sempre fazíamos - e, ao colocar o vinil para tocar, tive um choque. Eu nunca havia escutado nada como aquilo. Era um hard rock pesado, furioso, porém livre, solto, com longas passagens instrumentais que me deixavam absolutamente fora de órbita. As músicas que mais me impressionaram foram “Child in Time” (com os gritos espetaculares de Ian Gillan), “Smoke on the Water” (é claro, não poderia ser diferente), “Highway Star” (uma pancadaria sublime que fazia os discos de heavy metal que eu ouvia pareceram canções de ninar), “Strange King of Woman” (com o incrível duelo entre a voz de Gillan e a guitarra de Ritchie Blackmore) e, principalmente, “Space Truckin’”, com uma longuíssima jam instrumental.

O que mais me chamou a atenção nesse primeiro contato com o Deep Purple foi o teclado. É claro que eu fiquei de queixo caído com o vocal de Ian Gillan e a guitarra de Blackmore - jamais menospreze o que essa combinação pode fazer na cabeça de um garoto de 16 anos -, mas o teclado era algo novo, um instrumento até então praticamente inédito no meu vocabulário sonoro. Eu escutava quase que apenas heavy metal na época, bandas como Metallica, Venom, Iron Maiden. Ouvir as teclas de Jon Lord me mostrou que havia muito mais a ser descoberto.

É difícil tentar colocar em palavras, tentar explicar, o motivo que faz você gostar de uma banda, ainda mais se essa banda está na sua vida há décadas e faz parte da trilha sonora dos seus dias desde que você era um adolescente. Mas uma das coisas que sempre me fascinou no Deep Purple foi o que Jon Lord fazia. Eu era doente por Led Zeppelin, então já tinha um vocalista e um guitarrista - Robert Plant e Jimmy Page - na minha banda dos sonhos. Eu adorava Black Sabbath (aliás, a descoberta da música do grupo em plena adolescência é hipnotizante e arrebatadora), mas nenhuma das duas tinha algo como o Deep Purple tinha: um tecladista que tocava como um guitarrista, colocando o seu instrumento em destaque ao lado da tríade guitarra-baixo-bateria e não fazendo como a maioria dos outros tecladistas, que, pelo menos no meu entendimento naquela época, criavam apenas “camas” sonoras e climas para os outros músicos voarem.

Sempre gostei mais dos discos da fase final da primeira parte da carreira do Deep Purple do que dos álbuns clássicos do grupo. Prefiro Stormbringer ao onipresente Machine Head, Burn a In Rock. E isso se dá pelo fato desses álbuns focarem menos no peso e mais no swing, no balanço, no groove. Stormbringer, por exemplo, tem uma das minhas músicas preferidas do Purple, “Hold On”, onde o teclado de Lord é o instrumento principal. O mesmo pode ser dito da fenomenal “Might Just Take Your Life”, de Burn.



A morte de Jon Lord deixa um vazio. Perdemos um músico fenomenal, que nunca teve medo de experimentar e tentar unir as suas duas grandes paixões, o rock e a música clássica. Quase um instrumentista erudito em uma banda de rock e, por isso mesmo, um dos principais responsáveis por transformar essa banda em algo muito maior que apenas um grupo de rock.

Jon Lord foi um músico único, e, sem dúvida, o maior tecladista da história do rock. Enquanto caras como Keith Emerson e Rick Wakeman focavam em exibicionismo e virtuosismo, transformando-se, em certas passagens de suas carreiras, quase em artistas de circo, Lord focou o seu talento singular na música, na banda, nas composições. Seus álbuns solo merecem uma audição atenciosa - principalmente Sarabande, de 1976 -, mas foi através do trabalho em seu próprio grupo, o Deep Purple, que Lord escreveu a sua história e se transformou em um ícone gigantesco.

Ainda estou chocado com a sua morte. Por mais que estivesse acompanhando a luta do músico contra o câncer, e que a perda da batalha fosse uma possibilidade, a gente nunca espera que ela aconteça. Infelizmente, mais um gigante se foi. Fica a música, que, nesse caso, é muito mais que apenas uma frase clichê para encerrar um texto. O legado de Jon Lord é a própria história do teclado no hard rock. Sem exageros, sem saudosismo, sem sentimentalismo. Apenas a verdade, e somente ela. 

Comentários

  1. Que texto bonito!
    Parabéns.
    O Made in Japan foi um disco que me abriu muito a cabeça para música.
    Sensacional. Bela homenagem para o mestre Jon Lord!
    Abraço.

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  2. Ricardo, esse foi o meu primeiro disco de rock pesado - gastei de tanto ouvir! Pena o velho Lord ter partido, tive a sorte de assistir a um concerto deles há uns 12, 14 anos e vi a maestria do homem. RIP JL

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  3. Compartilho dos mesmos sentimentos que você, Ricardo. Apenas com a diferença que minha primeira experiência com o Purple foi ao som de "Burn". Parabéns pelo texto, e pelas palavras que expressam o que todos nós, fãs de Jon Lord, sentimos nesse momento.

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  4. Baita texto, Ricardo. Bela homenagem. Leio o blog - e gosto bastante - há cerca de dois anos, mas nunca me manifestei por aqui, porém, com a perda de um ídolo, resolvi comentar. Meu "choque" com Deep Purple foi por volta de meus 14 anos, quando assisti o vídeo do show de 1972, em Copenhagen. Eram incrível ver os improvisos, toda a técnica, swing, todos tocando impecavelmente, aquele entrosamento da banda, e é claro, "aquele cara" que eu pirava ao ver seus solos, empurrando o Hammond, que voltava no para a frente por causa da "mola" que havia embaixo. Como você mesmo disse, o Deep Purple se tornava singular pelo dom único de Jon Lord. Que o legado desse gênio seja mantido para sempre. Abraço!

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  5. O Made in Japan foi também o primeiro disco do Purple que eu ouvi na minha vida...quando estava no colegial... realmente é um clássico... alias uma enorme parte do meu desenvolvimento como ouvinte de música devo a esse disco e duas coletâneas em fita tape ...uma do Sabbath e outra do Led...a partir daí ficou consolidado a base de meu gosto... como o Cadão gosta de escrever...o meu "porto seguro" ... sobre o Lord...é dificil dizer algo a mais do que já foi dito no texto...é um monstro sagrado do heavy e do hard ... músico que merece ser estudado por quaquer individuo que pense em inserir o teclado como instrumento protagonista em uma banda de rock ou metal

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  6. Ricardo,
    este também foi meu primeiro disco do Purple. Excelente texto,

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  7. Ricardo,
    Excelente texto. Made in Japan também foi meu primeiro disco do Purple.

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  8. Mais que um belo texto, Ricardo, compatilho com você o mesmo vazio. Jon era um dos meus heróis musicais. Quando soube da morte, chorei como se choram amigos queridos. Estranho isso. Vi-o em ação algumas vezes, sempre discreto, cavalheiresco, mas deixando um recado eterno pelas teclas do Hammond. Até hoje me impressiono com seu trabalho, sobretudo aquele que une rock ao erudito. É ali que se vê a imensa capacidade de Jon, que nada ficava a dever a Keith ou Rick. A gente não quer que nossos herois fiquem vivos, em carne e osso, eternamente. Considero a memória, a lembrança, muito pouco para se conviver em alguns casos. Como o de Jon Lord.

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  9. No meu caso foi numa ordem diferente mas que me impressionou da mesma forma. 1º conheci o Machine Head e esse foi o disco que me fez um rockeiro. O Seelig colocou de uma forma perfeita pra mim. Ele foi um tecladista que tocava como um guitarrista. Perfeito!!! Quero completar essa homenagem dizendo que após o que mestre JON LORD fez no Purple.... NO ROCK PESADO NADA MAIS FOI RELEVANTE PRA MIM NO SOM DO TECLADO.

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  10. cara, pra mim teus textos tem uma coisa muito legal, que é o reconhecimento: você materializa em palavras o que a gente pensa. Pra mim, Jon Lord foi o cara que reinventou e revolucionou o uso dos teclados com peso e personalidade, elevou os teclados a uma posição de destaque.
    Ele foi o Hendrix dos teclados.
    God bless

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  11. Muito legal seu texto. Eu sou provavelmente mais velhinho que você e pude curtir o Deep Purple no início da década de 70. Na época, além dos discos, eu curtia os programas Pop Time da rádio cultura aos domingos às 3 da tarde e o programa Kaleidoscópio do Jacques a meia noite na rádio América. Era tudo tão difícil naquela época. Hoje temos tudo na net, naquela época era uma batalha conseguir ouvir um som legal.

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