Kashmere Stage Band, a banda de colégio que abalou as estruturas do funk norte-americano


Para apreciadores da black music que se acabam no instrumental sofisticado de combos como The JB’s, Mandrill, War, Soul Seven ou Nite-Liters, o caminho da perdição segue nesta direção: Kashmere Stage Band, uma big band negróide que conduzia um jazz-funk poderoso, sobrecarregado de instrumentos de sopro e com o groove pesando uma tonelada. Para entender a saga desta cultuada banda de colégio que praticamente se tornou profissional, é preciso reportar ao início dos anos 1960, nos Estados Unidos, mais precisamente ao extremo norte da cidade de Houston, no Texas.

É ali o berço da Kashmere High School, célebre escola secundarista norte-americana e uma das tantas que dispõe do tradicional ensino musical em sua grade curricular. Localizada no gueto Kashmere Gardens e frequentada predominantemente por alunos negros e de baixa condição social, se notabilizou em fomentar o talento de seus pupilos para que pudessem seguir carreira nas asas da música. Meta que, por sinal, seguia uma disciplina rígida, incluindo participações da banda do colégio em acirrados campeonatos musicais. Essas bandas escolares levavam o nome de stage bands e as disputas eram chamadas de batalhas. Uma prática repleta de rivalidade que se tornou frequente à partir do início dos anos 1960 e se estendeu até metade da década de 1980.

Mas não era só a musicalidade de seus prodígios alunos que diferenciava a Kashmere High School das outras agremiações. Seu principal trunfo estava nas orquestrações do educador musical Conrad O. Johnson - vulgo Prof para os seus séquitos. Profundo conhecedor do jazz e das ramificações da música negra, Johnson era um mestre exigente que comandava com mão de ferro o aprendizado musical de seus pupilos. Entre seus artifícios, o desenvolvimento de arranjos pra lá de elaborados e a inclusão de solos virtuosos nas instrumentações, suficientes para desbancar a concorrência que não chegava nem perto dessa eficácia. O resultado é que durante os anos em que esteve à frente da instituição, Johnson ganhou com o seu coletivo de alunos nada menos que 42 das 46 batalhas disputadas entre 1969 e 1977. Não tinha pra ninguém.


Apesar do amadorismo inicial, o objetivo de Johnson era transformar a Kashmere Stage Band em uma banda profissional, e o próximo passo nesse sentido começava a ser maquinado. Dono do selo Kram Records, Johnson passou a gravar discos com a sua trupe, e não demorou muito para criar um culto em torno do nome da banda. Ao todo, foram registrados oficialmente oito álbuns entre 1968 e 1978, a saber: Our Thing (1969), Bumper-To-Bumper Soul (1970), Thunder Soul (1971), Zero Point (1972), Kashmere Live ‘73 (1973), Plays Originals (1974), Out of Gas But Still Burning (1974) e Expo ’75 – Concert Tour Japan/Okinawa (1975), todos poderosamente fantásticos e raros, já que a tiragem de cada disco não passava das mil cópias e a distribuição era praticamente amadora. Hoje existem as reedições, mas as edições originais alcançam a média de 500 dólares cada.

Uma verdadeira orquestra black power fazendo uma combinação jazz/soul/funk de responsa, mostrando muita energia e vitalidade. Arranjos sensacionais, ora sincronizados, ora repletos de duelos e improvisos, combinando solos de metais virtuosos, linhas de baixo bem desenhadas, pianinho e órgão na medida black, instrumentos de percussão calibrados, uma bateria marcante que dava o beat característico do funk, além de solos de guitarras que, quando surgem, mostram garras afiadas. Um groove pesado com uma qualidade sonora que transcedeu o som feito por outras bandas colegiais e até mesmo profissionais, levando a trupe a excursionar não só pelos Estados Unidos, como também por toda a Europa e Japão. 


Depois da saída de Johnson da escola no final dos anos 1970, a banda de colégio mais funk da história encerrou suas atividades e poucos de seus integrantes seguiram uma carreira de destaque no circuito musical. Em fevereiro de 2008, após um recesso de trinta anos, os membros da Kashmere Stage Band se reuniram para um concerto no auditório da escola, com o intuito de prestar uma justa homenagem ao seu grande líder e fundador, Conrad O. Johnson. A apresentação, com a presença do mestre, foi filmada e virou o documentário Thunder Soul: The True Story of Conrad Johnson & The Kashmere Stage Band, lançado em 2010, produzido pelo ator Jamie Foxx e dirigido por Mark Landsman. 

E como o destino vive pregando suas peças, dois dias depois deste histórico acontecimento a morte carregou Johnson, aos 92 anos de idade. Palmas para o mestre que deixa seu legado para futuras gerações e que agora fará regências em companhia celestial.



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