O prazer de ouvir um bom disco

Nessa correria de hoje em dia, onde tudo é feito de maneira instantânea por pessoas que passam 24 horas conectadas, há um sentimento de urgência e uma necessidade de saber tudo o que está acontecendo que beira a paranóia. Precisamos mesmo estar online sempre? Temos a necessidade quase patológica de emitir uma opinião definitiva e repentina sobre tudo. Ouvimos uma música, já temos que julgá-la. Assistimos a um filme, já temos um raciocínio. Não damos tempo para que o nosso cérebro digira o que acabou de absorver. Ou nem deixamos que ele absorva, em casos mais extremos.

Essa urgência coletiva transformou a geração que cresceu tendo a internet como melhor amiga em uma espécie de zumbis culturais, que tem tudo à sua mão, mas não vão fundo em nada. É tudo muito raso, sem profundidade, sem conteúdo. O cara se diz um grande fã do Deep Purple, mas só conhece “Smoke on the Water”. É especialista em Black Sabbath, mas nunca escutou “A National Acrobat”. É aficcionado por Led Zeppelin, mas não consegue citar três canções da banda além de “Stairway to Heaven”, “Rock and Roll” e “Black Dog”.

É preciso desacelerar um pouco. Viver no ritmo normal. No ritmo em que as coisas, as músicas, os filmes, tudo o que temos contato, tenham tempo para penetrar no nosso subconsciente e ir transformando, lentamente, a nossa maneira de ver e entender o mundo.

Lembro de quando era um colecionador de LPs. Naquela época, eu só ouvia os discos completos uma ou duas vezes, quando os comprava. Depois, sempre escutava músicas esparsas, as minhas favoritas. O surgimento do CD chegou junto com a maturidade, e transformou a minha forma de consumir música. Comprei o meu primeiro em 1991 e, por mais estranho ou espatafúrdico que possa parecer, foi com os e;es que comecei a escutar álbuns do início ao fim. O botão “shuffle” (ou “random”, dependendo do aparelho) virou o meu melhor amigo. E seu primo, o “repeat”, um companheiro de todas as horas.

Tenho tentado retomar alguns hábitos antigos, que, sem querer e por uma série de fatores, acabei deixando de lado. Um deles é chegar em casa e colocar um CD para tocar. Escolher na prateleira entre os milhares de títulos que estão ali, abrir a caixa, pegar o disco e botar no player. E deixar a música me levar pelos caminhos que ele decidir ir. Relaxa, desacelera, alimenta a mente.

Fiz isso o final de semana todo. Ao invés de pegar um disco, colocar no carro e sair sem rumo (esporte que continua sendo um dos meus favoritos), passei grande parte do sábado e do domingo ouvindo música em casa, relaxando no sofá enquanto lia um livro, ou jogava algo no PS3, ou simplesmente deixava a minha imaginação alçar vôo. Redescobrindo o prazer de separar uma parte do dia para a música e somente ela, abrindo as portas e deixando ela entrar e fazer a sua parte, reconquistando meu coração e realimentando a minha alma. De Flow do Conception a Brave New World do Iron Maiden, passando por Kind of Blue do Miles Davis e desembarcando nos primeiros discos do Black Sabbath, iniciei a semana renovado, com a energia carregada e acreditando que a vida é muito mais colorida do que era antes. E tudo isso só por causa da música, do bem que ela me (nos) faz.

Você já sabia disso. Faz tempo, na verdade, assim como eu. Mas talvez tenha, como foi o meu caso, se deixado levar pelo correria generalizada, pela urgência onipresente do nosso tempo e, mesmo sem querer, foi deixando de lado esse prazer, esquecendo essa doce rotina.

Retome, recomece, reinicie a sua vida. Coloque doses enormes de música nos seus dias. Ouça os seus discos. Afinal, eles foram feitos para serem escutados e tocados, não para ficarem expostos em sua prateleira como troféus de coisa nenhuma.

Ter uma coleção de discos é uma benção, uma dádiva. Uma grande e rica coleção de CDs e LPs possui o mesmo valor que uma biblioteca cheia de livros. As duas eternizam a produção cultural do seu tempo, são documentos que contam a história do ser humano através daquilo que ele foi capaz de criar.

Cuide bem dos seus discos, e eles cuidarão bem da sua vida.

Por Ricardo Seelig

Comentários

  1. Desacelerar. Esta é a palavra.

    E nada melhor que escutar um bom disco de vinil, olhando a capa velha, imaginando quem comprou aquele Vol.4 em 1972 e o impacto que foi ouvir os primeiros acordes de Wheels of Confusion.

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  2. Lindo texto, belo relato. Adoro saber sobre a relação das pessoas com a música. Excelente estímulo, a música e a sua capacidade de revolucionar, ultrapassar barreiras, mudar concepções. A música como sempre, aclarando mentes e acalentando corações.

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  3. se for ver bem, até escutar um álbum enquanto faz outra coisa é "errado". melhor ter o disco como atividade principal do momento e não deixá-lo apenas como a trilha sonora de alguma outra atividade.

    ah, se possível evitar o uso exagerado do "shuffle" que pode descaracterizar a obra musical. imagina ouvir o dark side of the moon fora da ordem (a lenda d'o mágico de oz ia pra cucuia nessa, hehe) ou então o songs for the deaf, onde uma música puxa a outra?

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  4. Concordo com o du nha. O ideal é ouvir o disco sentando numa poltrona, tomando uma boa cerveja e degustando um bom charuto rss, mas infelizmente nem todo mundo tem tempo pra isso.

    Eu pelo menos acabo ouvindo muita coisa na correria do dia-a-dia.

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  5. Estou lendo o texto e escutando Back in Black. Disco mais batido impossível, mas continua eterno, assim como já era quando o ouvi pela primeira vez.

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  6. Ótimo texto Ricardo!

    Concordo plenamente com ele e, principalmente, o primeiro parágrafo. Isso se aplica também às pessoas, nas novas amizades. As pessoas não tem tido mais paciência em fazer novas amizades, em reconhecer amigos de verdade. Tenho sorte de ter grandes amigos de longa data e outros bem recentes.

    Mas uma coisa me incomoda muito e creio que todos aqui conhecem alguém deste tipo: quase ninguém tem interesse, paciência, seja lá o que for, pela leitura. Você manda um texto, recomenda uma leitura a um amigo, uma leitura de assuntos em comum, tipo música, e a pessoa nem lê quando percebe que tem que "rolar" a página. Isso é muito triste!

    Acho que isso que comentei tem tudo a ver com os dias de hoje. Isso é o que o sociólogo Zygmunt Bauman chamou de “modernidade líquida”, dentre outras coisas.

    Mas paro por aqui! rsrsrs. Abraço a todos.

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  7. Excelente texto ,infelizmente hoje em dia existe muita opinião e pouco conteúdo. parabéns pelo texto.

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  8. Antes do mp3, as listas eram importantes pra mim pra gastar o meu dinheiro bem e conhecer o cenário do rock e fazer boas aquisições (investimento). Depois do mp3, as listas tem sido guias pra mim porque é tanta informação que você não tem tempo nem de checar, metabolizar a coisa. Pra mim, nos dois contextos, as listas sempre foram guias. Antes faziam meu dinheiro render. Agora, fazem o meu tempo render.

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  9. Boa, temos que ter um tempo para de fato digerir e ENTENDER o que o artista quer passar com aquela canção. Nos surpreendemos gostando de discos que até então abominávamos, assim como o contrário também pode acontecer, discos que considerávamos bons mas que não eram isso tudo...

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  10. Seus textos são muito bons, pena que sua postura como ser humano não parece ser das melhores.
    (Não que minha opinião importe)
    Boa sorte com o blog!

    David Oaski

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  11. Ótimo texto,sou fã do blog,eu tenho por costume ouvir no sábado ou domingo vários itens da minha coleção,cd e vinil...é um prazer que faz muito bem.
    Gosto de curtir a capa,o encarte,é uma verdadeira viagem.

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  12. Quando comecei a ler esse texto, parecia que estava sentindo o que o editor havia sentido quando descreveu o momento em que escutava música.. É fantástica essa sensação.. de poder ir no âmago das suas emoções e perceber que ainda existem seres humanos com o mesmo pensamento. Música é um maravilhoso remédio!!

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