Discoteca Básica Bizz #010: Os Mutantes - Os Mutantes (1968)



A conhecida falta de memória nacional nada mais é do que a falta de disposição, compreensão e competência das instituições - desde o governo até a imprensa especializada - em apoiar a produção e a preservação da cultura brasileira. Não é à toa que muita gente busca no rock americano ou inglês a sua fonte única de inspiração e conhecimento, enquanto as pérolas da MPB permanecem no esquecimento.

"Que pérolas?", pergunta o leitor, atarantado. Pois é. A MPB está na pior - não temos qualquer música vital, forte ou espirituosa. Mas há vinte anos não era assim. Houve a bossa nova, a tropicália (anote aí: "bossa nova" não é uma invenção da vanguarda londrina), coisas que poderiam dar um forte impulso ao rock nacional, em sua busca de identidade. Realmente, não é justo que só a tal "geração AI-5" tenha conhecido o primeiro LP dos Mutantes, lançado em 1968 … eis as pérolas!

Pelo ineditismo para a época e pelo seu distanciamento dos clichês roqueiros, este pode ser considerado o melhor disco do grupo (sem menosprezar os posteriores, Mutantes de 1969 e A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado de 1970). Rita Lee, Arnaldo e Serginho Baptista faziam música, está na cara, pelo puro barato de criar, de se divertir. 

Assim como outras obras-primas da tropicália, este disco contou com o auxílio do George Martin (nota: produtor dos Beatles) brasileiro, Rogério Duprat. Sintetizar orquestralmente as ideias lisérgicas que os Mutantes simplesmente jorravam não deve ter sido fácil, mas com certeza Duprat curtiu adoidado. 


Vejam só: o disco abre com "Panis et Circensis", de Caetano e Gil. De repente a música se interrompe como se alguém tivesse tropeçado no fio do toca-discos. Em seguida ela continua para acabar em meio a ruídos de sala de jantar, com talheres e conversas familiares. Tudo isso com orquestração digna de aberturas wagnerianas. Depois vem "Minha Menina" (Jorge Ben) e "O Relógio", de autoria do grupo, um dos grandes momentos deste lado, graças à estranheza do contraste entre a melodia leve e o non-sense da letra ("O relógio parou / desistiu para sempre de ser antimagnético, 22 rubis / eu dei corda e pensei / que o relógio iria viver / pra dizer a hora de você chegar").

"Maria Fulô", de Leonel de Azevedo e José de Sá Roris, cai num clima de quilombo, com marimbas, kalimbas e cuícas no maior samba. "Baby", de Caetano, é cantada (imaginem só) por Arnaldo. A última faixa do lado A é "Senhor F" ("O senhor F / vive a querer / ser senhor X / mas tem medo / de nunca voltar / a ser senhor F outra vez"), mais uma pérola de autoria do grupo, com arranjo inspirado (assim como em outros momentos desde LP) em coisas do Sgt Pepper’s, dos Beatles.

O lado B abre com "Bat Macumba" e segue com Rita cantando, à la Françoise Hardy, o clássico francês "Le Premier Bonheur du Jour". "Trem Fantasma", Mutantes em parceria com Caetano, destaca uma bela combinação de vozes com metais. "Tempo no Tempo", versão de uma música dos The Mamas & The Papas, tem um solo de carrilhão no final, e "Ave Gengis Khan" encerra o disco num pique de George Harrison, com fortes toques orientais.

É isso aí. De resto, só mesmo ouvindo. Os climas mudam, de faixa para faixa, da água para o vinho. Sem nenhum preconceito, os Mutantes fizeram uma viagem psicodélica pela música universal, bastante influenciados pelos Beatles e auxiliados pelas partituras mágicas de Rogério Duprat. É um disco de MPB, tratado com o espírito efervescente da época, o espírito de libertação das formas e padrões. Por isso é um disco que os roqueiros brasileiros devem conhecer. Junte-se ao coro dos que exigem o relançamento dos LPs dos Mutantes. "Tem que dar certo…"

(Texto escrito por Thomas Pappon, Bizz#010, maio de 1986) 

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