Discoteca Básica Bizz #039: Marvin Gaye - What's Going On (1971)


Quando, em 1985, o staff do New Musical Express elegeu este O Melhor LP de Todos os Tempos, houve alguma surpresa e nenhuma contestação. Afinal, a primeira coisa que se pode dizer sobre o disco é que nunca houve tamanha síntese - gospel, rhythm and blues, jazz e doo-wop na mútua fertilização de uma soul music 24 quilates e 1.001 filigranas.

Marvin Gaye atravessara a década de 1960 como um curinga no celeiro/linha-de-montagem da Motown - além de gravar como cantor, participava aqui e ali como compositor, arranjador, produtor e instrumentista (além de piano, toca bateria em vários dos hits das Supremes). Todos os contratados da gravadora tinham, porém, de se encaixar no rígido molde pop ditado e concebido por Berry Gordy Jr. Do repertório ao vestuário, passando por aulas de dicção e boas maneiras, todas as arestas de negritude eram aparadas em nome de um romantismo platônico e doce (mas nunca meloso). O transe carnal dos blues e spirituals do gospel ainda estava lá, mas em baixíssimos teores.

Com essa fórmula, Gordy - tendo iniciado seu selo independente a partir de sua loja de discos - tomou conta das eletrolas e radinhos de pilha do universo. Pop clássico, eterno - mas uma camisa-de-força para talentos como Marvin Gaye e Stevie Wonder, cujo potencial só seria revelado no começo dos anos 1970, quando conquistaram sua autonomia dentro da gravadora.



What's Going On foi a primeira batalha ganha nessa guerra e custou todo o cacife do cantor. O lançamento atrasou alguns meses porque a Motown não queria editá-lo de jeito nenhum, alegando que as músicas eram longas demais; não tinham começo, nem meio, nem fim; não falavam de amor, e sim de religião, política, drogas, ecologia. Marvin ameaçou não gravar mais uma nota sequer pela gravadora, e fez pé firme. Ganhou estourando a banca. Três das faixas - a título, mais "Mercy, Mercy Me" e "Inner City Blues" - viraram hits singles e, até hoje, as vendas do LP somam oito milhões de cópias só nos EUA.

Venceu, assim, a visão de um gênio que confessou ter passado a segunda metade dos 60s atormentado com a irrelevância do que estava gravando, diante da revolução de consciência que ocorria no mundo e do surgimento do selo Stax, afiando todas as arestas que a Motown limara. Dirigindo-se, desde os primeiros sulcos, aos brothers e sisters, Marvin compõe um manifesto panorâmico da vida no gueto - pobreza, violência e drogas - antes de atacar as questões universais que tinham arrepiado a diretoria da Motown.

Musicalmente, não existe nada mais doce. As faixas se interligam numa só levada, lânguida e hipnoticamente esticada numa espécie de suíte. Tudo flui numa textura de cordas e metais que Paddy McAloon, do Prefab Sprout, definiu como Mozart de patins. Marvin não escrevia, mas contornou o problema gravando fitas e fitas assobiando as frases dos violinos, transcritas então pelo regente/orquestrador David van DePitte. Produzido pelo próprio cantor, o disco exibe uma maestria instrumental certamente assimilada no trabalho com Norman Whitfield, que um dia ainda será reconhecido como um dos maiores gênios da música do século XX. Sua entrada na Motown como compositor/arranjador/produtor redefiniu o pop como a marca registrada da gravadora, principalmente com os Temptations. Com Marvin, desenvolveu o monumento "I Heard It Through the Grapevine", o que já bastaria como credencial. 

Em What's Going On, porém, Marvin mostra que já não precisava dele, nem de ninguém. Os vários canais de gravação são utilizados num show vocal, algo como um grupo doo-wop de um homem só, em contracantos e harmonias que talvez só Sam Cooke poderia igualar, houvesse em sua época tecnologia para isso.

(Texto escrito por José Augusto Lemos, Bizz #039, outubro de 1988)

Comentários