A saga do Soft Machine iniciou-se por volta de 1961, ao redor da Simon Langton School, em Canterbury, no norte da Inglaterra. Lá, um grupo de estudantes das mais diversas áreas costumava reunir-se nos fins de semana para ouvir as novidades do jazz (John Coltrane, Charles Mingus, George Coleman) e discutir suas predileções nos campos das artes plásticas (Jackson Pollock, Mark Rothko), literatura (todos os beats) e música contemporânea (Stockhausen e Luigi Nono principalmente).
Entre os papos, a turma tocava informalmente, dando o nome de Wild Flowers à flutuante formação que, segundo a lenda, mudava a cada semana. Entre os mais assíduos dessas jams estavam Mike Ratledge (teclados), Robert Wyatt (bateria, voz) e Kevin Ayres (baixo, voz). Certa noite, um amigo os apresentaria ao guitarrista Daevid Allen, um freak australiano que por sua vez os iniciou na técnica dos tape-loops (que ele desenvolvera originalmente com o então desconhecido Terry Riley) e no uso do LSD. Pronto. Nascia assim o Soft Machine (uma homenagem ao romance homônimo de William Burroughs), um grupo fundamental para a eclosão do chamado art rock - ou progressivo, como queiram - não só em seu país como em toda a Europa.
Em 1966, já fixado em Londres, o grupo, junto ao Pink Floyd, lançaria as bases da psicodelia local, participando de happenings em casas noturnas como a Roundhouse e a UFO. Nessa primeira fase - que se estendeu até 1969 -, as composições do quarteto estavam banhadas de vibrações ácidas, introduzindo um clima burlesco salpicado de citações dada no sisudo universo sonoro britânico. Musicalmente, tais temas esbateriam de vez as fronteiras existentes entre o jazz e o rock, além de - ousadia maior - privilegiar os timbres de teclados, em pleno reinado da guitarra elétrica. Entretanto, isso não impediu que Andy Summers circulasse pela banda e que Jimi Hendrix tocasse em "Feelin', Reelin', Squealin' ", o lado B do primeiro e único single deles para a Polydor.
Após dois LPs de canções curtas pelo selo Probe (um fiasco comercial) e mudanças que quase o exterminam prematuramente (saíram Allen e Ayers, com a entrada do baixista Hugh Hopper e do saxofonista Elton Dean), o Soft Machine parte para o seu projeto mais ambicioso: o álbum duplo Third. Vale lembrar que, no mesmo ano de 1970, Miles Davis gravaria Bitches Brew. No trabalho em questão, o grupo foi reforçado por uma excepcional seção de metais: Nick Evans (trombone), Lyn Dobson (flauta, sax) e Jimmy Hastings (clarineta, flauta), mais o violino de Rob Spall. Third dividiu-se em quatro faixas, cada uma ocupando o lado inteiro de um disco. Eram temas complexos, altamente improvisados, que fluíam às custas do virtuosismo dos músicos. Frases e linhas pessoais independentes umas das outras, mas que em momentos-chave se coagulavam em núcleos de puro êxtase.
Jazz, nova música ou o que? A beleza atemporal de Third conseguiu desafiar os rótulos fáceis. A verdade é que "Facelift", "Slightly All the Time" e "Out-Bloody-Rageous" e, principalmente, a insana fantasia de "Moon in June", permaneceram à parte de tudo que foi criado no período. Um vórtice de colagens radiantes, breaks violentos, espasmos, fugas de órgão, clusters de sax e devastações rítmicas que confluíam para um incandescente oceano sônico de basalto e lava vulcânica.
Ao lado de Ummagumma, do Pink Floyd, e In the Court of the Crimson King, do King Crimson, Third foi a derradeira pá de cal despejada sobre o esquife dos Beatles. A partir dele, nomes já esquecidos, como Henry Cow, Faust, Matching Mole, Caravan, Centipede, Gong e Hatfield and the North realizaram apaixonantes exercícios no gênero, sem encontrar, todavia, a coesão e o impacto dos modelos originais.
(Texto escrito por Arthur G. Couto Duarte, Bizz #045, abril de 1989)
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