Iron Maiden, Senjutsu e uma reflexão sobre longevidade


2021, e eis que mais uma vez o mundo do heavy metal interrompe a programação normal para saudar a vinda de mais um álbum do Iron Maiden. Quando o Iron Maiden lança um disco novo, esse disco se torna praticamente a coisa mais importante da vida do fã por um tempo. Todo mundo que ama a banda, incluindo os fãs que amam reclamar da fase atual, sabe exatamente do que eu estou falando.

Dentro desse mundo, não há banda que mobilize semelhante comoção.

Dias antes do 3 de setembro, data do lançamento oficial de Senjutsu, o décimo sétimo álbum de estúdio do Maiden, lojistas já comercializavam o lançamento em mídia física, o que resultou no vazamento prematuro do material, satisfazendo uma demanda voraz e global. Em poucas horas, meu feed no YouTube já anunciava vídeo resenhas apaixonadas. Nos fóruns de discussão já se via animadíssimas tentativas de avaliar o álbum dentro do contexto geral da obra do conjunto britânico - algo que, nem é preciso dizer, os fãs conhecem de dentro para fora.

Dias antes do álbum sair, o YouTube já sugeria vídeo covers de guitarra de faixas do novo disco. O Iron Maiden tem esse poder de fazer tudo parar, de mandar moleques ao redor do mundo se trancarem no quarto para tirar as linhas de guitarra antes de a noite terminar.

Dentro do mundo do metal, ninguém comanda tamanha paixão e devoção. Nenhuma banda no gênero captura a imaginação dos fãs do jeito que o Iron Maiden o faz. O fenômeno global Iron Maiden é algo realmente único e especial.

Eu comecei a ouvir heavy metal em 1998, aos 13 anos. À época, o lançamento mais recente, o mal falado Virtual XI, passara-me batido. Por influência do meu pai ouvia Rolling Stones, Deep Purple e algumas coisas do Led Zeppelin, e começava a frequentar lojas de discos especializadas para aprender mais com as recomendações dos lojistas.

Conheci a banda garimpando CDs na seção de usados da saudosa Satisfaction Discos, em Copacabana, ponto de encontro dos roqueiros cariocas. Eles tinham uma cópia surradíssima do A Real Live One, e outra, menos maltratada, da coletânea Best of the Beast, a edição simples. Criança, achei as capas legais, e levei ambos os discos para casa. Ouvi até não poder mais. O estrago fora feito: nos próximos meses eu deixaria de comer merenda na escola para poupar os trocados e adquirir todo o catálogo da banda até aquele momento. Seria incrível se não fosse tão comum. Pense nisso: em se tratando do Iron Maiden, essa história é até bastante ordinária, sem exageros.

O ano 2000 foi um marco. Lembro-me bem de matar aula no colégio para chegar na Sempre Música, loja de discos em Ipanema, no horário de abertura, e garantir minha cópia do novíssimo Brave New World, álbum que marcou—mesmo—a minha geração e que pôs o Iron Maiden no patamar imperial que eles magistralmente souberam administrar e expandir até o lançamento desse Senjutsu. É um feito admirável, que fascina milhões de fãs, grupo que inclui até mesmo estrelas pop como Lady Gaga, historiadores da música popular, antropólogos de cultura contemporânea e empresários do show business.

A pirralhada que virou noite para tirar as músicas do Senjutsu e causar sensação no YouTube é uma versão do moleque que eu fui um dia, quando menti para os meus pais que havia ido à escola.


Qual é a razão desse relato todo?

Analisando as respostas ao Senjutsu até agora, noto uma pronunciada presença de reflexões autobiográficas enfiadas nas avaliações do álbum, muito mais do que aconteceu com discos anteriores. Esse entrelaçamento entre a vida e a obra de um artista é um fenômeno que me fascina, e eu gostaria de compartilhar alguns pensamentos a respeito disso com os fãs e, com sorte, dar início a uma conversa sobre o tema da longevidade no metal.

Caros, o Iron Maiden está na estrada há mais de 40 anos. Estão na estrada há mais tempo que eu estou no mundo.

Eu, que completo 36 anos em breve, claramente não sou mais aquele moleque de 13 anos. Do Brave New World para cá, o que aconteceu foi simplesmente o fim da minha adolescência e mais de uma década e meia na vida adulta. Que o Iron Maiden tenha conseguido se manter altamente relevante na minha vida é algo que me fascina. Eu fui, sou e provavelmente sempre serei um headbanger, mas o que eu gosto mesmo é de música, e meu gosto vai muito além do metal. Minha biblioteca no iTunes possui, nesse momento, 3.664 álbuns. A letra A começa com o compositor experimental italiano A.R. Luciani, a obscura banda prog inglesa A.F.T. e o estranhíssimo ÄÄNIPÄÄ, e termina com o afrobeatklezmer do Zion80, o espetacular grupo palestino-israelense Ziryab Trio e o sempre necessário ZZ Top.

Esse A a Z é o que aconteceu nesse últimos vinte e tantos anos. É tempo pra dedéu! É impressionante o tanto que acontece ao longo de tantos anos. É incrível como a gente muda.

Tendo em mente tudo isso, chega esse Senjutsu. Disco feito por meia dúzia de sessentões - um deles, o baterista NickoMcBrain, já praticamente septuagenário.

Considerações preciosistas à parte, concordo com o Ricardo Seelig quando ele coloca o marco zero do heavy metal, o primeirão mesmo, como a estreia do Black Sabbath, de 1970. Isso quer dizer duas coisas importantes: 1) o estilo tem pouquinho mais de 50 anos; 2) não há precedentes de comparação para as poucas bandas ainda na ativa que hoje são quase tão velhas quanto o próprio gênero. O metal mal era qualquer coisa quando Steve Harris começou o Iron Maiden, em 1975.


Aqui chegamos no ponto que me parece crucial.

Como sempre acontece com lançamentos da banda desde o Brave New World, muitos comentários sobre o novo álbum insistem em compará-lo, desfavoravelmente, ao Iron Maiden dos anos 1980. Isso é, por um lado, compreensível. Por outro, é uma abordagem que considero improdutiva não apenas para a avaliação do Senjutsu, como principalmente para o futuro da cultura do heavy metal.

Não se trata, é claro, de relativizar a força do legado da banda: a sequência que vai de Iron Maiden (1980) até Seventh Son of a Seventh Son (1988) é sim coisa legendária, e na opinião de muita gente, eu incluso, a série mais impressionante da história do metal (talvez a única outra que se compare seja o Death, de Scream Bloody Gore até The Sound of Perseverance, embora o impacto cultural esteja completamente noutra escala). O ponto não é esse.

A questão é que o metal agora tem algo que nunca teve antes: velhice. Aqueles 23 anos que passaram para mim também passaram para Steve Harris, Bruce Dickinson e cia. Também passaram para vocês.

Porém, há 23 anos não havia heavy metal feito por sessentões. Esse é o fenômeno interessante, que merece a nossa consideração como um tema em si, e também como parte do fenômeno maior dentro do rock, em que há outros exemplos importantes, como Rolling Stones e Rush.

Senjutsu não é só apenas um álbum do Iron Maiden: ele compõe, com álbuns como Firepower do Judas Piest e 13 do Black Sabbath, e mais alguns outros, a primeira safra de discos produzidos na velhice por artistas desse gênero que a gente ama.

O Sabbath excursionou com um batera mais novo, e já se aposentou. O Priest surpreendeu a todos com um álbum vigoroso, e parte desse vigor está sem dúvida no time mais jovem que hoje compõe ou auxilia a banda. Mas e o Iron Maiden, que segue sem mudanças há mais de duas décadas? Como entender o papel da produção discográfica mais recente no estatuto que ocupam hoje, maiores do que jamais foram, com discos que em pouco lembram sua produção oitentista?


Tenho, decerto, muitas ideias a respeito desse tema, mas não pretendo me prolongar. Gostaria de terminar esse texto perguntando aos jovens que estão descobrindo a banda agora: o que é Senjutsu para vocês?

Eu conheço um moleque, ex-aluno meu, que começou a ouvir a banda com The Final Frontier, disco duramente criticado por tantos fãs das antigas. Ele nunca tinha ouvido nada parecido, e ficou maravilhado com as melodias de “When the Wild Wind Blows”. E essa molecada postando vídeos no YouTube, ansiosos para compartilhar com o mundo a alegria de tocar “Death of the Celts”, “The Parchment” ou “Hell on Earth”?

Esse Iron Maiden do Senjutsu não é o mesmo do Piece of Mind. Mas hoje nós também não somos as mesmas pessoas que fomos em 1983. Raios, em 1983 eu nem era ainda.

Quem é você agora? É justo avaliar Senjutsu nesses termos?

O debate crítico sobre Senjutsu não deve, na minha opinião, se perder em comentários restritos à memória afetiva dos fãs. A meu ver, o lugar do álbum nesse debate é o mesmo lugar de discos como Clockwork Angels, trabalhos feitos na velhice por artistas que passaram toda uma vida construindo uma obra e adentraram um contexto sem precedentes.

Você pode ter certeza: pelo ineditismo da situação, esses discos mais recentes do Maiden, imperfeitos que sejam, integram uma espécie de nova classe de clássicos do estilo. Vão servir de exemplo para todos que sonharem com a longevidade no heavy metal. Exemplo bom ou ruim? Bem, eu amo esses discos todos, mas minha opinião é irrelevante: acho cedo para dizermos. Nas próximas décadas teremos uma outra perspectiva, possibilidade inaugurada pela continuada produção em idade mais avançada por partes de outros artistas.

Multiplicados os exemplos, saberemos julgar com mais justeza o quê, nessa produção pós-60 anos do heavy metal, é crescimento, a singularidade da assinatura autoral, nostalgia, perda de identidade, perda de talento, falta de ideias.

Imagine se fôssemos tratados agora tendo o nosso passado como referência obrigatória para julgar quem somos hoje. Imagine viver o agora pensando no quanto as coisas eram melhores quando se era jovem.

Toda uma configuração da vida psicossocial dos fãs se oculta na maneira com que álbuns como Senjutsu são avaliados. E isso é, sem dúvida e claramente, um fenômeno extramusical.

Por Nelson Shuchmacher Endebo


Comentários

  1. É muito legal que eles ainda tenham a vontade de lançar novas músicas, mas venho tentando desde o Dance of death e não consigo me empolgar com nenhum disco desde então. A fórmula está gasta. E não é saudosismo, senão eu não estaria curtindo os últimos lançamentos de Steven Wilson, Mastodon, Ghost, Opeth, Haken, Pain of Salvation, etc… prefiro o The X Factor a qualquer um dos discos após o Brave New World.

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  2. Argumento e reflexão perfeitos os desse texto do Nelson. Porém ouso, gentilmente, discordar. E vou tomar o próprio Rush, supracitado, para usar como referência.
    Rush, por mais que seja uma banda setentista, reinventou-se criativamente ao longo dos anos. Sem medo de experimentar, passeou por vários estilos, incorporou vários elementos novos, não teve medo de ousar, nem muito menos ousou se acomodar, e por isso passou por altos e baixos (sonoros, não de carreira). É comum ver que em sua fanbase existem aqueles que gostam somente de determinada fases da banda, e também puderas, tamanha é a diversidade sonora produzida pelo trio. Tudo isso sem perder sua assinatura estilística nem sua personalidade. Ou seja, mesmo sendo da primeira safra de “dinorockers” que hoje continua escrevendo o rock/metal (quer dizer, no caso do Rush não mais, mas abranjemos essa comparação aos demais ainda ativos e do mesmo naipe), é uma banda que sempre se REVITALIZOU sonoramente.
    Voltemos ao Iron Maiden. No caso deles, uma banda longeva não necessariamente é uma banda revitalizada. E o fato decorrente disso é que desde muito tempo a qualidade criativa dos caras só despencou. E não me refiro a fase “atual”. Isso é algo que vem acontecendo, ao meu ver, desde The X Factor. Houve um suspiro de vitalidade com o retorno de Bruce e Adrian no começo dos 2000, e que rendeu boas crias, mas ainda assim, a fórmula maideniana era a mesma arrastada desde NPFTD. Fórmula essa necessária, claro, pois é ela que dá liga ao elo banda-fã, mas que depois de tanto tempo, fica desgastada. E é por isso que apesar de concordar com todos os argumentos do texto (a analise de temporalidade foi perfeita), não consigo me convencer de que Senjutsu e seus irmãos mais velhos mais próximos sejam grandes obras. Eles podem sim configurar uma nova linha de clássicos que se comunicam com as gerações mais novas de uma maneira diferente que a nós, fãs mais antigos (tbm tenho 35 e tbm começei pelo BOTB), mas isso não exime a banda da falta de inventividade necessária à captura de nossos corações, aquela chama que nós, fielmente, sempre ficaremos aguardando.
    Portanto concluo que toda essa rendição social evocada como base para sustentar a banda de agora em detrimento da de outrora é antes resultado do fenômeno Iron Maiden em si, como produto cultural globalizado de massas, como um gigante de reputação inquestionável, e não ao fato de serem ainda hoje os músicos vigorosos/criativos, pois não o são mais. Ainda há chama, mas ela já não queima mais como antes. Apenas aquece.

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  3. Na verdade o IRON MAIDEN sempre fez o som que o STEVE HARRIS queria e não é diferente agora. Deve ser maravilhoso ter poder para se fazer o que se quer e não ligar para o que os outros pensam! Deve ser maravilhoso se atingir o ápice de algo sem abrir as pernas para ninguém! O IRON MAIDEN só é a lenda que é porque sempre agiu dessa forma e não penso que a banda, nesta altura da vida, se preocupará com seus "detratores". Àqueles que acham a banda "cansada", "repetitiva" e "sem ousadia", que vão ouvir outras coisas ou os discos antigos da donzela. E cito que este é o meu caso! Mas o IRON MAIDEN merece o meu respeito por seguir em frente e não se preocupar nem um pouco com a opinião dos fãs, por mais que goste deles, e isso é raríssimo, mas raríssimo mesmo, de se ver no mercado musical. Com esta atitude a banda certamente está perdendo alguns milhões, mas pelo menos está sendo digna, independente do que os fãs pensam de seus trabalhos recentes.

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