Lovy Metal e o colecionismo inclusivo


O hábito de colecionar, por si só, é excludente. Ainda mais em um país com uma economia desigual como o Brasil. Falamos de música, mas podemos começar discutindo um item extremamente popular: o álbum de figurinhas da Copa do Mundo. O álbum da Copa 2022 custa R$ 12 na sua edição mais simples e R$ 44,90 na versão em capa dura. Cada envelope com cinco figurinhas sai por R$ 4. Como o álbum completo possui 670 cromos, para completar tudo sem repetir nenhuma figurinha é preciso R$ 536, pouco mais de 44% do valor do salário mínimo atual, que é de R$ 1.212. A estimativa é que 38% dos 217 milhões de brasileiros recebam um salário mínimo por mês, o que dá em torno de 82,5 milhões de pessoas que precisam fazer um cálculo simples: colecionar o álbum da Copa ou colocar comida na mesa? A resposta é bem simples, convenhamos.

Voltando para o mundo da música, o colecionismo tem se tornado cada vez mais excludente, principalmente quando falamos de discos de vinil. Os valores praticados no Brasil são proibitivos para a maioria dos fãs de música, com um LP simples raramente custando menos de R$ 200, R$ 250 reais. Esses valores tem feito com que os próprios colecionadores de vinil, antes defensores radicais da mídia, começassem a mudar seus hábitos de compra para o CD, muito mais em conta. E aqui vale lembrar: ainda que continue sendo fácil encontrar CDs legais com preços acessíveis, a escassez de títulos de catálogo no mercado, o crescimento na ofertas de produtos com acabamento especial e a diminuição da tiragem (um lançamento hoje possui, quando muito, tiragem de 1 mil cópias como padrão, isso para um país, como já vimos, que tem 217 milhões de habitantes) tem feito os preços dos CDs também subirem, e atualmente não é raro encontrar CDs nacionais com valores acima dos R$ 100.

Traduzindo: o colecionismo é para poucos. Mas não deveria ser assim. O hábito de colecionar faz parte da experiência de ser humano e possui justificativas históricas, filosóficas e psicológicas. Colecionar tem a ver com o sentimento de pertencimento a um grupo, competição, medos, fracasso, desejos não realizados, vontade de se isolar num mundo e ser capaz de comandá-lo. O ato de colecionar também pode nos ajudar a sermos mais organizados, a tomar decisões mais facilmente, lidar com o mundo exterior, exercitar a paciência e a memória. É por isso que colecionamos discos, filmes, livros, HQs, selos, latas, tampinhas, camisetas e o que for: esses itens fazem parte da nossa identidade e ajudam a contar a nossa experiência de vida.

Nesse sentido, iniciativas como a série de compilações Lovy Metal não são apenas louváveis, como necessárias. Lançada pela gravadora Som Livre no início dos anos 2000, contou com quatro volumes: Lovy Metal (2001), Lovy Metal 2 (2002), Lovy Metal 3 (2003) e O Melhor de Lovy Metal (2007). Todas, como o título sugere, trazem tracklists construídos com as baladas mais conhecidas de grandes nomes do metal e hard rock como Queensrÿche, Scorpions, Europe, Mr. Big e outros, além de hinos do AOR do quilate de “Dust in the Wind” do Kansas, “More Than a Feeling” do Boston e “Rosanna” do Toto. Essas coletâneas Lovy Metal são excelentes não apenas pela coleção de músicas que trazem, mas porque são acessíveis, com preços dentro da realidade da imensa maioria do público brasileiro, e tornam possível que todas essas razões que nos levam a colecionar sejam possíveis para todo mundo. E quando isso é aplicado a uma arte tão formidável e única como é a música, todos os elogios ainda são poucos.

Existe, como sempre, uma parcela de fãs de música que desprezam esse tipo de compilação, olhando de cima para essa categoria de itens. Infelizmente, a arrogância faz parte da personalidade de uma parte considerável de “colecionadores”, que costumam muito mais propagar aos quatro ventos os itens raros que possuem e quanto eles supostamente valem do que, efetivamente, ouvir a sua coleção. Afinal, compramos discos para escutá-los, certo?

A série Lovy Metal se tornou um fenômeno de vendas em um país de dimensões continentais como o Brasil justamente por causa de sua acessibilidade, em todos os sentidos: tanto pelos preços atrativos quanto pelas canções que os CDs trazem, que apresentam nomes consagrados do rock e heavy metal através de suas músicas mais conhecidas e fáceis de serem digeridas. Um excelente portal de entrada para quem adorou “Still Loving You” e pode se interessar por uma obra-prima como Lovedrive (1978), amou “Silent Lucidity” e pode ter a sua cabeça mudada com uma música muito mais complexa como a presente no clássico Operation: Mindcrime (1988) ou não consegue parar de ouvir “Crazy” e corre o risco de ficar ainda mais apaixonado depois de escutar um álbum como Toys in the Attic (1975).

O colecionismo, apesar de todos os pontos levantados nesse texto e em todos os outros não mencionados, não precisa ser excludente. Ele deve ser inclusivo. A arte precisa ser acessível, pois todo indivíduo deve ser exposto a ela, mesmo que não a conheça. É por isso que milhões de novos ouvintes ficaram vidrados em “Master of Puppets” após o episódio final da quarta temporada de Stranger Things: foram apresentados a algo que nem sabiam que existia, e agora não conseguem conceber a própria existência sem uma música que marcou profundamente suas vidas.

A vida é uma grande coleção. De momentos, emoções e memórias. E tudo isso ganha um novo significado com a música.

Comentários

  1. Quanto mais um produto deixa de ser popular, mais ele se torna um item restrito a poucos nichos, no caso, os colecionadores mesmo. E é lógico q a tendência é o preço ir encarecendo.
    Há umas décadas, quando começaram a bombar os serviços de troca de música (uma das causas do cenário atual), as gravadoras insistiram em manter elevado o preço dos cds (não tanto quanto hoje) , além de serem confeccionadas edições porcas, que mal tinha as letras da músicas.
    Se você não é um colecionador ou um fã de música (como a maioria dos consumidores não são), realmente irá pensar duas vezes antes de comprar um produto q te oferece algo muito próximo do que um programa gratuito de troca de música. Aí deu no q deu... e qto menos colecionadores houverem, o preço atual (q já não é baixinho) , continuará aumentando...

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  2. Gosto muito das coletâneas Lovy Metal. A Som Livre acertava nesse tipo de material, foi assim também a coletânea dos anos 80, lá por meados dos 2000.

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