A irracional fase Racional de Tim Maia

Racional é um dos álbuns mais míticos da música brasileira. Lançado originalmente em 1974, por mais de trinta anos foi objeto de desejo voraz de colecionadores, fato que só foi amenizado em 2006, com o seu tão aguardado lançamento em CD. Mas, para entender o porque de tudo isso, é preciso fazer uma pequena viagem no tempo.

Tim Maia havia lançado quatro discos até 1973 que, por mais que mostrassem uma qualidade acima da média, não haviam estourado e transformado Tim em um fenômeno de vendas. Extremamente autoral e sempre priorizando a sua liberdade artística, Tim trabalhou durante todo aquele ano em um novo LP, e, quando o julgou terminado, apresentou o resultado para a Philips, sua gravadora na época. André Midani, diretor da companhia, recusou o álbum (outro trabalho recusado por Midani na mesma leva Atrás do Porto Tem Uma Cidade, de Rita Lee & Tutti Frutti) e ordenou que Tim refizesse tudo e lhe apresentasse uma nova alternativa. Temperamental, o cantor não admitiu a recusa e rompeu seu contrato com a gravadora. 

Esse fato coincidiu com a descoberta por parte de Tim Maia da seita Racional Superior, a qual se converteu em um fanático adepto. Esta controversa organização era baseada na obra Universo em Desencanto, que defendia que a raça humana tinha origem extraterrestre, em um local chamado Planície Racional (o encarte do disco traz essa teoria mais detalhada, e vale uma análise minuciosa dos delírios nela contidos). Tim Maia resolveu então bancar do próprio bolso a gravação e criou seu próprio selo, o Seroma (sigla para Sebastião Rodrigues Maia, seu nome de batismo), para colocar o disco no mercado, transformando-o assim no primeiro trabalho independente de um artista brasileiro.


As letras dos dois volumes de Racional são uma defesa clara e obstinada do livro Universo em Desencanto. As faixas propagam os ideais propostos pela Racional Superior, resultando em um painel que une em um mesmo caldeirão o surrealismo e o fanatismo religioso. Mas é musicalmente que o bicho pega … Adicionando doses generosas de funk e soul a sua música, Tim alcançou em Racional um resultado admirável. O groove ganhou temperos tropicais, gerando um novo som que nem mesmo o próprio Tim conseguiria repetir no futuro. Mas o que poderia ser o estouro comercial definitivo de Tim Maia foi abortado pelo próprio autor. Após um perído de cegueira fanática, Tim enfim acordou e percebeu que havia metido os pés pelas mãos. Desiludido com a Racional Superior, retirou do mercado todos os exemplares disponíveis de Racional e Racional Vol. 2 (1975), transformando assim um disco espetacular em uma obra pra lá de cult. 

O tempo transformou os dois volumes em objeto de desejo de fãs, colecionadores e DJs, fazendo com que uma raríssima cópia do vinil original alcançasse valores estratosféricos. Isso fez com que por muito tempo Racional carregasse a título de "o disco mais caro"  lançado por um artista brasileiro. 


Em 2006 a gravadora Trama lançou o álbum finalmente em CD. Trabalhando a partir de um vinil, os engenheiros de som e técnicos da companhia transportaram o som original para o formato digital, remasterizando-o de forma exemplar. Todo esse trabalho resultou em uma belíssima edição, que trouxe como bônus também a versão em vinil que serviu de base para a recuperação do material.

Ouvir as faixas de Racional é um prazer. Inspiradíssimo, o cantor entrega pérolas como "Imunização Racional (Que Beleza)" e a positiva "Bom Senso", ambas com belos arranjos e linhas vocais cativantes. Mas a principal música de toda essa fase é "Rational Culture", um hipnótico funk guiado por uma linha de baixo pulsante, onde Tim canta em inglês sobre o Universo em Desencanto. É possível ouvir em "Rational Culture" influências do funk psicodélico do Funkadelic de George Clinton, mostrando o quanto Tim estava antenado com o que rolava na época nos guetos norte-americanos.


Recentemente, através de uma coleção lançada em bancas de revistas pela Editora Abril, os dois volumes de Racional foram relançados em luxuosos digibooks, repletos de textos e informações sobre o período. Além disso, um controverso Volume 3, com sobras de estúdio e gravações da época, também foi disponibilizado, mas serve mais como curiosidade, já que está bem abaixo dos discos originais.

Racional é um trabalho único, a visão maluca de um gênio criativo sobre suas crenças, devidamente embalado por um balanço nunca mais ouvido na música brasileira. Por tudo isso, chamá-lo de clássico, por mais que soe retundante, é uma obrigação.

Comentários