Quando os deuses tornam-se humanos

Quando estamos crescendo, é não apenas natural, mas diria até mesmo vital, espelhar-nos em algumas figuras. Os pais, amigos mais velhos, irmãos, tornam-se referências e inspirações em nossas vidas.

Para o fã de música, a identificação com os ídolos exerce papel semelhante. Você passa a adolescência toda descobrindo um novo mundo repleto de sons, e alguns batem tão forte que acabam tornando a relação fã-ídolo algo extremamente próximo no campo emocional, ainda que ambos nunca tenham se encontrado pessoalmente.

No meu caso, os Beatles mostraram um novo mundo, o Led Zeppelin revelou que tudo era possível, e o Iron Maiden impregnou o amor pelo heavy metal em todo o meu DNA. Por essa razão, três figuras em especial representam mais do que apenas ídolos para mim: Paul McCartney, Jimmy Page e Bruce Dickinson. Dois deles já vi ao vivo, enquanto Page, apesar de fazer parte dos meus dias desde sempre, jamais esteve fisicamente ao meu lado.

A música é mágica. Ela nos conduz por sentimentos, traz à mente momentos passados, faz com que a memória seja sempre reativada ao escutar determinadas canções. E essa relação do fã com o ídolo, muitas vezes, faz com que a gente que está do lado de cá se esqueça que eles, do lado de lá, também são humanos. Que Paul, Jimmy e Bruce também sentem o mesmo que os nossos corações sentem. Que John, Miles e Tony são pessoas como nós, feitas de carne e osso.

Para a minha geração, formada por esses caras na faixa dos 40 anos que olham para si mesmos e se enxergam mais como adolescentes maduros do que homens feitos, a morte de Ronnie James Dio em 2010 fez cair a ficha de que os músicos responsáveis pela trilha de nossas vidas não eram imortais. A doença de Tony Iommi, que hoje convive com um linfoma todos os dias e se equilibra nos fios que o conduzem, revelou que, mais do que uma hipótese distante, uma verdade que julgávamos estar longe de chegar, a possibilidade da perda destes ícones estava mais próxima do que a gente pensava.

E então surgiu a notícia de que Bruce Dickinson está com um câncer na língua. Bruce, o Air Raid Siren, a voz de uma geração, talvez o vocalista mais emblemático do heavy metal. No meu caso, aquele irmão mais velho que nunca tive, que me mostrou não apenas a música, mas me conduziu por suas outras paixões, como a literatura e o rádio. O cara hiperativo, que pula de um lado para o outro do palco sem jamais perder o tom. Que leva a sua voz às alturas. Que é a cara do Iron Maiden, caminhando lado a lado com o seu coração, representado por Steve Harris.

Esse cara, que eu e você julgávamos, de maneira inconsciente e inocente, ser imortal, não é. Esse cara, que representa muito mais do que apenas um simples cantor de uma banda de rock para milhões de pessoas, subitamente cai do olimpo e se revela um mortal como nós, e não um deus como imaginávamos.

Por mais que soe estranho o que irei dizer, senti a notícia da doença de Bruce de maneira surpreendentemente forte. Não sei se é o momento que estou vivendo, já que meu pai também está passando por um problema sério de saúde, se todo esse contexto me deixou mais frágil emocionalmente, mas o fato é que a notícia de que Bruce está com câncer bateu mais forte do que o normal. Mais forte do que deveria. Podem ser os anos e anos de convívio próximo mesmo estando longe. Pode ser a associação direta com a música que amo e a figura deste pequeno inglês. Não sei. O que sei é que o meu dia se estragou com o anúncio do câncer de Dickinson.

E no final, não há nada que nós, milhões de fãs espalhados pelo mundo, possamos fazer. A corrente é espontânea. O pensamento positivo, onisciente. O Iron Maiden, no final das contas, não importa. Não quero saber se o Maiden vai gravar outro disco, sair em outra turnê. Isso tudo é pequeno, muito pequeno, perto do que está acontecendo com Bruce Dickinson. O que desejo e espero é que o meu hipotético irmão mais velho supere esse problema de saúde e siga vivendo a pleno vapor como sempre fez, envolvido em dez coisas ao mesmo tempo e realizando todas elas com perfeição.

Esse é Bruce Dickinson. Ao mesmo tempo um deus, ao mesmo tempo um homem comum. Mas, sempre, uma inspiração e um exemplo. 

Estamos com você, velho amigo. Hoje e sempre.

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