Explicando Caetano Veloso: o início e o primeiro disco



Caetano Veloso faz parte de uma particular qualidade de artista popular: tanto já foi dito, escrito, suposto e inferido sobre ele, que o esperado seria que se esgotassem todas as possibilidades de algo novo a seu respeito. Mais ainda: no decorrer desses mais de quarenta anos de vida artística, ele próprio não se furtou de se auto explicar prolixamente em todas as ocasiões em que teve oportunidade, exercício que sempre apreciou mais do que qualquer outro dentre os seus pares.

Dito isso é estranho, mas inescapável, a constatação de que, apesar de tamanha exposição, auto exposição e inúmeras tentativas de explicação, Caetano Veloso permanece ainda tão inexplicável quanto sempre foi. Rios de informação, declarações intermináveis, auto exposição atordoante, descrições minuciosas, e ainda assim, tudo que dele consegue-se extrair são apenas pistas, escorregadias insinuações, nunca a certeza palpável. Outra singularidade é que, talvez mais que qualquer outro artista, Caetano construiu uma obra a tal ponto fundida a si próprio que é simplesmente impossível fazer exame dela sem análise prévia do homem. No universo Caetanesco, o homem e sua produção são um só, partes indivisíveis, indissociáveis. Além disso, o artista não cansou de desconstruir e reconstruir a si mesmo (e, por extensão, à sua obra) no decorrer de sua vida, esbarrando em todas as vezes (natural, intencionalmente e com gosto) em polêmica e controvérsia.

O estardalhaço que atrai em torno de si é produto disto. Aqui reside o segredo mestre que vem a explicar o fascínio e escárnio que continua a exercer através das décadas: toda explicação proposta acerca do Caetano de então já é defasada pelo tempo no instante entre formulação e exposição, exigindo assim uma nova explicação, que assim que exposta, exigirá outra, num ciclo interminável. Ao contrário do que possa fazer parecer, porém, isso está longe de tornar o exercício de sua análise uma atividade enfadonha. Não. As respostas aos questionamentos acerca do baiano trazem sempre o elemento do interesse, do encanto, da fúria, do deboche, mas nunca do tédio ou apatia.

Levando este sem fim de discussões intrínseco ao que é para a sua obra, Caetano, por extensão, faz dela um campo minado do questionar e explicar, que por fim, gera aquele que sem dúvidas é o legado que melhor explica o Brasil em termos de música, fazendo de si mesmo, também, uma das mais interessantes personalidades do caleidoscópio da cultura pop em todos os tempos.

Assim sendo, este conjunto de textos que aqui tem início se dedica a uma atividade desde já fadada ao fracasso: explicar a obra (e por consequência, o homem) que tem sido a trilha sonora de todos os momentos, presente em todos os lugares, na minha vida.

Mas que problema tem? Nem tudo na vida precisa dar certo.

Aos amigos leitores, aqui vai mais uma (malfadada) tentativa de explicar Caetano.


"Melhor que o silêncio, só João"

Em 1958, João Gilberto lançou "Chega de Saudade" (Tom Jobim, Vinícius de Moraes), inaugurando a bossa nova e um novo momento na música popular brasileira. De fato, a análise do deflagrar deste movimento revela um lance central na história da cultura de nosso país: ao concentrar rigorosamente todos os elementos de renovação que a música brasileira precisava, através de um olhar simultâneo para dentro e para fora, passado e futuro, resgatando o que de grande havia no legado tanto do canto quanto da poesia nativas, e fundindo-as aos sofisticados métodos do cool jazz , então frente máxima de invenção da música americana, numa interpretação altamente pessoal, íntima e profunda do samba, João deu início a uma reflexão sem precedentes acerca do estado vigente das coisas na cultura popular brasileira, acabando por atingir o escopo projetado por outros músicos de talento, que vinham desde o decênio anterior tentando a renovação necessária a um cenário musical dominado pelo exagero disfarçado de eloquência, mas traçando para tal um caminho irregular e incoerente, que por vezes tropeçava na imitação de americanismos.

Onde os outros músicos trabalhavam com os moldes, João Gilberto utilizava a cerne dos intrincados mecanismos, levando tudo para dentro e trazendo à luz a estrutura das coisas, fazendo uso magistral dos espaços de silêncio. De fato, poucos músicos entenderam tão bem o central papel do silêncio na construção sonora ou souberam fazer tão bom proveito dos espaços em branco. Conseguiu com isso dar origem a uma música palatável e rica, simples em sua estonteante complexidade.

Foi um momento de compreensão plena da música brasileira no que diz respeito ao lugar que ocupava em relação ao que acontecia no mundo. Significou a redescoberta do poder da língua na construção do som, legitimando o cantar antes pela forma que pela extensão e travou um trajeto de retorno ao bom uso das estruturas e procedimentos. Era algo pensado e espontâneo, novo. E essa nova música possibilitou o uso do tradicional na confecção da produção de toda uma geração contemporânea e futura. Pôs em nova perspectiva o que foi, o que era, e o que havia de ser.


Há quem diga que quem ouviu "Chega de Saudade" à época lembra com exatidão do que sentiu no momento. Gilberto Gil discorre: "Aquilo era como se fosse um canto de sereia, você começava a olhar para a cara dos outros, perguntando: ‘Você está ouvindo também? É isso mesmo o que eu estou ouvindo? Eu não estou maluco?’. As pessoas começaram a se procurar exatamente para se defenderem da loucura".

E foi exatamente nessa procura ao outro que a arte de João chegou a Caetano Veloso. "Eu tinha dezessete anos quando ouvi pela primeira vez João Gilberto. Ainda morava em Santo Amaro, e foi um colega do ginásio quem me mostrou a novidade que lhe parecera estranha e que, por isso mesmo, ele julgara que me interessaria: ‘Caetano, você que gosta de coisas loucas, você precisa ouvir o disco desse sujeito que canta totalmente desafinado, a orquestra vai pra um lado e ele vai pro outro’. Ele exagerava a estranheza que a audição de João lhe causava, possivelmente encorajado pelo título da canção ‘Desafinado’ - uma pista falsa para primeiros ouvintes de uma composição que, com seus intervalos melódicos inusitados, exigia intérpretes afinadíssimos e terminava, na delicada ironia de suas palavras, pedindo tolerância para aqueles que não o eram. A bossa nova nos arrebatou. O que eu acompanhei como uma sucessão de delícias para minha inteligência foi o desenvolvimento de um processo radical de mudança de estágio cultural que nos levou a rever o nosso gosto, o nosso acervo e - o que é mais importante – as nossas possibilidades."


"Mas deixa o destino, deixe ao acaso."

É verdade que foi a bossa nova que o liberou, mas mesmo antes de entrar em contato com a arte de João Gilberto, a música já tinha conquistado lugar cativo no peito do baiano. Nascido de família grande, como tantas outras que se distribuíam aos montes pela homogênea extensão de Santo Amaro, Caetano Emanuel Vianna Telles Velloso havia crescido cantando e dançando samba de roda, e desenvolveu o amor pela música brasileira em todas as suas variações através da rádio e do disco.

Quinto dos sete filhos de sua casa, quando prestes a completar quatro anos escolheu o nome de sua irmã recém-nascida tendo como inspiração uma bonita valsa de autoria do pernambucano Capiba chamada “Maria Bethânia”, sucesso na segunda metade da década de 1940.

Durante a infância chegou até a ensaiar tortos passos em programas de calouros de rádio e, já adolescente, se transformou no cantor favorito dos ginasianos. Além disso, conseguiu adquirir alguma habilidade ao piano, que aprendeu a tocar praticando num modelo que havia em sua casa. A ideia da música enquanto ofício real, no entanto, demorou a se mostrar a ele como palpável e a penetrar-lhe o pensamento.

Pensava em ser professor. A ideia de ensinar e estar cercado de gente jovem aprendendo e o admirando pela atividade do ensino muito o agradava. Mais tarde, as atividades relacionadas ao cinema também haviam de se insinuar tentadoramente como ocupação permanente, assim como as artes plásticas e a carreira de crítico do audiovisual.

O ajuste dos trilhos da vida de Caetano em direção ao caminho da música foi se dando paulatinamente. Com 18 anos mudou-se com a família para Salvador, que à época vivia um particular momento de intensidade cultural, o que acabou por revelar a Caetano um excitante novo mundo de estímulos, idéias e cultura. Ingressou no curso de filosofia da UFBA em 1963, ano em que foi apresentado a Gilberto Gil pelo produtor Roberto Santana, iniciando amizade também com Gal Costa e Tom Zé.


A experiência de acesso ao ensino superior, assim como a frequência ao teatro, à pintura e ao cinema combinado ao convívio com jovens artistas, lhe abrira a mente. Foi nesse contexto de alargamento de horizontes que surgiu a primeira oportunidade de vínculo realmente profissional de Caetano com a música: Álvaro Guimarães, diretor de teatro, que lhe havia sido apresentado por duas pintoras, Sônia Castro e Lena Coelho, que dividiam um ateliê que o baiano frequentava, lhe encomendou, sem mais aquela, a trilha musical da peça "O Boca de Ouro", de Nelson Rodrigues. Apesar da relutância inicial, fruto de uma honesta insegurança quanto a sua capacidade de dar cabo à tarefa, acabou por ceder, chegando até a também compor a de "A Exceção e a Regra", de Bertolt Brecht.

A sensibilidade e imaginação de Caetano se pôs a aflorar no período, e não apenas a sua, mas também a de sua irmã, Maria Bethânia. Desejando a si mesma, inicialmente, como atriz, Bethânia não tardou a descobrir-se como a peculiar e misteriosa musa de mil máscaras que viria a se tornar. A baiana havia realizado uma participação na trilha composta pelo irmão para "O Boca de Ouro". Ele relembra: "Ao se apagarem todas as luzes, antes que se visse qualquer ator em cena, ouvia-se, no escuro, a voz única de Bethânia, então uma total desconhecida, cantando, sem acompanhamento e sem amplificação, 'Na cadência do samba', de Ataulfo Alves. Infelizmente o resto do espetáculo não estava à altura desse início (mas quantos, neste mundo, o estariam?) e pouca gente chegou a presenciar essa estreia inusitada."

Em boa parte devido a esta participação, um culto crescente à voz de Bethânia ia se solidificando entre os artistas e público boêmio em Salvador, e em toda parte havia quem lhe pedisse para cantar, fosse em barracões de festa de rua, ou em salas de apartamento. Caetano descolou um violão e logo estava acompanhando a irmã. A virada veio em 1964, quando Bethânia foi convidada para substituir Nara Leão no espetáculo Opinião, um musical de grande sucesso no Rio de Janeiro à época.

Não foi o primeiro show em que tiveram contato na confecção. Nesse mesmo ano haviam participado do histórico show "Nós, Por Exemplo", junto a Gal, Tom Zé, e outros, todos ainda absolutamente desconhecidos do grande público. O número exerceu notável influência sobre a concepção do que era um espetáculo ao misturar de maneira original canção, texto, conceito e ideologia.


Houve ainda um segundo show, o "Nova bossa velha, velha bossa nova" que trabalhava na tentativa de encaixar a bossa num olhar de longo alcance da história da canção no Brasil. Foi por essa época também que, a pedido do produtor musical Solano Ribeiro, Caetano inscreveu uma canção sua, "Boa Palavra" no festival que Ribeiro dirigiria na Tv Excelsior de São Paulo. A canção acabou por ser classificada e chamou a atenção de gente de peso. Em 1965, por fim, Caetano abandonou a faculdade e foi junto com Bethânia para o Rio de Janeiro. Ele havia composto "De manhã", que a cantora incluiu no repertório do espetáculo a pedido dos produtores.

Dentre as canções presentes no musical havia ainda uma de João do Vale, chamada "Carcará" que com Maria Bethânia se tornou um massivo sucesso ao sair em compacto, fazendo-a conhecer o sucesso nacional. O compacto contava com a composição de Caetano no lado B, que mais tarde ganharia ainda duas importantes e belas interpretações a cargo dos grandíssimos Elisete Cardoso e Wilson Simonal. Com Bethânia nacionalmente conhecida e tendo gravado um samba seu, a música, que antes parecia mais uma sugestão passageira, agora parecia se impor como um caminho a seguir.

Como ele mesmo diz, Caetano foi deixando o acaso construir seu destino. E à aquela altura, Caetano Veloso não via outra vida para si que não fosse a de artista.


O nascer de Caetano e Gal em disco

Em 1965, Caetano estreou no mercado fonográfico com o compacto "Cavaleiro/Samba em Paz". Pessoalmente gosto muito das duas gravações, nas quais nos deparamos com a interpretação de um Caetano visivelmente não muito familiarizado com o ambiente de estúdio, não tão confortável quanto o que se ouviria posteriormente. Longe de comprometer o resultado, isto acaba, na verdade, por conferir um charme especial às fortes composições do baiano, nas quais pode-se conferir o já precoce lirismo do autor, com destaque especial para os lindíssimos arranjos de ambas as faixas. Apesar do fervor que gerou entre seus pares e de sua premente qualidade, o compacto fracassou.

Situação semelhante acontecia a Gal, então Maria da Graça, que também havia se estabelecido no Rio seguindo a esteira de Bethânia, assim como Caetano. Após debutar em disco fazendo participação na faixa "Sol Negro", de autoria de Caetano, em duo com Bethânia, no primeiro LP desta, Gal estreou no compacto "Eu Vim da Bahia (Gilberto Gil) / Sim, Foi Você (Caetano Veloso)". Também gosto dos registros, as composições são preciosas, apesar do fato de que o timbre mais grave escolhido pela cantora para as interpretações seja capaz de causar estranhamento.

O sentimento compartilhado era o de permanente frustração. Foi então que entrou em lance aquela que, de certo, foi a mais importante das apostas feitas por João Araújo, (1935 – 2013), um dos maiores executivos da história da indústria musical brasileira e que nos anos 1980 ficaria mais conhecido como pai do grande Cazuza. Araújo, à época diretor da gravadora Philips, investiu na contratação dos artistas baianos e, diante da impossibilidade de gravar e lançar um disco para cada um, trabalhou num LP conjunto que servisse a apresentar os dois ao mercado e público. Lugares, olhares, lembranças.

Memória, fragmentos de memória, estilhaços de consciência. Mergulhando. Afundando. A serena contemplação que vertendo calmamente atinge as raias do quase delírio. O corpo que sente, que vive o experienciar. Uma barafunda de sensações, sentires e sentimentos que não implode, mas verte placidamente em um rio de angústia serena e velada alegria.


Domingo, de 1967, disco que marca a estreia de Caetano, ainda Velloso, com o L dobrado de família, em LP, ao lado de Gal, que aqui assina sem o sobrenome Costa, captura tal miríade de impassíveis, porém inquietantes sensações. O trabalho apresenta-se também como um caso atípico: apesar de ser um produto que encaixa racionalmente no período em que foi gerado, acaba por mostrar-se fora de lugar no vislumbre geral da carreira de ambos os artistas.

O Caetano que aqui estréia em disco não exatamente dá pistas do multicolorido camaleão mutante no qual viria a se tornar e que ajudaria a definir a música popular brasileira a partir do final desta mesma década. Não. Neste precioso registro guiado por um peculiar senso de criação do belo, que trabalha a beleza não como uma busca, mas sim como uma certeza, o que temos é um documento e registro das composições da fase inicial da carreira do baiano, ainda imerso na suavidade e no lirismo bossanovista e distante da explosão cintilante de cores e sons do vindouro e revolucionário tropicalismo.

Gal, por sua vez, apesar de mostrar-se desde então uma cantora de primeira grandeza, opta sempre pela contenção, anos luz da fêmea fatal que haveria de se revelar nos anos seguintes. Uma serena melancolia permeia e persiste por todas as 12 faixas do álbum e tem sua razão de ser.

Neste ano histórico para o Brasil e para o mundo, a nossa música passava por um dilema de nuances conflitantes entre o futuro latente, de ritmo frenético, e um presente ainda indeciso, como que parado no meio da porta. O dito futuro se apresentava em figuras de tons sombrios para os padrões estabelecidos pelo dito bom gosto: a música comercial de romantismo simples, fácil, elétrico e amplificado, cuja expressão que já não podia mais ser ignorada e que tomava de rompante as paradas nacionais (principalmente através de Roberto Carlos). A arte moderna, por sua vez, ditava formas abstratas de se expor sonora, estética e poeticamente, e a fúria elétrica das guitarras dissonantes (aqui já assimilada numa versão mais clean, nos hininhos iê iê iê) cruzava o Atlântico através, principalmente, dos Beatles.

Já o tal presente, produto não menos polêmico da modernidade, vinha encarnado na figura da bossa nova e do lirismo dos poetas, por vezes inacessível às massas. Caetano, que sempre deteve particular senso de assimilação e atração pelo novo, além de uma rara veia de entendimento acerca do gosto popular (características que foram sempre seu combustível e veneno), deve ter sofrido uns bocados em meio a esta penúria. Tendo conseguido projeção no círculo restrito-quase fechado de música popular, ele queria sim expandir seu leque de possibilidades; entender qual era daquele iê iê iê; projetar-se para frente, com algo novo, mais vivo e repleto.


Sua resposta-resolução a este conflito viria no LP posterior. Aqui, porém, o que temos é a implosão das primeiras idéias de sua carreira. O trabalho contou com a produção de Dori Caymmi (filho do eterno Dorival Caymmi), que também assina autoria dos arranjos do disco junto com Francis Hime e Roberto Menescal e foi composto quase que em sua totalidade por Caetano, que ainda arregimentou em torno de si, em alguns momentos, outros compositores identificados com a estética bossanovista, como Gilberto Gil, Torquato Neto, Edu Lobo e Sidney Miller. Musicalmente, não há nada mais doce.

A faixa de abertura, "Coração Vagabundo", espécie de canção síntese do trabalho e fração mais conhecida do lote, dá o tom e nos ambienta no bucólico cenário construído a partir da poesia melancólico-esperançosa, da bela orquestração e das nuances das vozes dos dois artistas, que dividem didaticamente a interpretação da faixa. Quando entra a voz de Gal por sobre as cordas orquestradas, ouvimos não a poderosa musa fatal, que mais tarde, eletrificada, cantaria Caymmi, Roberto e Erasmo, e Jorge Ben. Não, aqui temos acesso às muitas nuances tenras de Maria das Graças, ou simplesmente Gracinha, devota fiel da suavidade joãogilbertiana. Na segunda fração da música, a interpretação de Caetano que foi elogiada por Tom Jobim, como conta o baiano: "Tom Jobim me disse diversas vezes que achava minha interpretação de 'Coração Vagabundo' de primeiríssimo nível: 'Você canta essa canção como um grande cantor', ele dizia".

Além deste primeiro dueto, temos mais dois, sendo que um destes se dá ao luxo comum à "Coração Vagabundo", o de ser uma obra-prima da beleza poética: "Domingo", a faixa título, escrita por Caetano, é uma pérola de beleza palpável, embebida em poesia telegráfica, por onde autor e ouvinte trocam preciosos polaróides de nostalgia.

Obras-primas também são "Onde eu Nasci Passa um Rio" - que traz conexão com o poema de Fernando Pessoa, “O Rio da Minha Aldeia”, e que mostra desde logo o admirável alcance poético dos escritos do autor, que aqui canta saudoso a sua terra natal - "Avarandado" - que inicia com lindos arranjos épicos orquestrados que se descortinam para dar vez à belíssima interpretação de Gal, que desenha com sua voz as mais belas paisagens - "Um Dia" - a canção que Caetano mais gostou de ouvir na sua voz, do disco todo, segundo ele próprio, e que delineia vozes, ecos e saudades de uma terra e um amor distantes - "Quem me Dera" - de introdução intimista, se desenvolvendo num tenro crescendo no qual Caetano desfila uma das mais belas letras que já escreveu numa de suas grandes interpretações - "Nenhuma Dor" (parceria do baiano com Torquato Neto), e "Minha Senhora" (Gilberto Gil e Torquato Neto) - ambos lindíssimos momentos intimistas solados por Gal, plácidos como ver a vida acontecer num banco de praça de dia de domingo.

"Candeias", de Edu Lobo, encontra aqui na voz de Gal uma de suas versões definitivas, de estonteante e emocionante leveza. "Remelexo" é um delicioso exercício da cartilha de João Gilberto. “Maria Joana” (Sidney Miller) persiste suave no caminho síntese do álbum, na iminência porém, de dar umas escapadas fora. "Zabelê", de Gilberto Gil e Torquato Neto, o terceiro e último dos duetos, é um doce momento de miscelânea de vozes. Domingo foi muito bem recebido dentro do círculo bossa-novista e serviu para alocar ambos os artistas em cena, fornecendo base para o que viriam a desenvolver mais tarde em suas respectivas carreiras.


O cantor vai mais fundo

“(Domingo) foi uma documentação do que eu já tinha feito e que não correspondia ao que eu fazia na época. Já estava com o germe do tropicalismo na cabeça.”

Logo, Domingo registra um terno polaróide de um doce olhar para o passado afetivo, enquanto que tem a sua cabeça voltada para o futuro (já quase presente) barulhento.

Já Caetano, já surgido como um compositor de nobre talento, ressurgiria camaleonicamente no ano seguinte com sua grande estréia solo.
Um verdadeiro treme terra cultural. Histórico e marcante, dando o pontapé a uma das mais inquietantes e ricas carreiras da história da música brasileira.
Mas tudo começou verdadeiramente aqui, como o descortinar das paisagens de um tempo bom, com cada canto de beleza sublinhado e transpirando poesia.
Um início feliz, podemos dizer.

Por Samuel Barros

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