Crítica de Embate do Século - Nação Zumbi vs Mundo Livre S/A (2013)


Na segunda edição do projeto Embate do Século, houve quem acusasse a gravadora Deckdisc de optar pelo jogo ganho ao colocar frente a frente duas bandas contemporâneas e surgidas rigorosamente dentro da mesma cena musical. Inspirada em um projeto da gravadora norte-americana BYO Records, que fez uma série de discos similares com grandes bandas da década de 90, a ideia é bem simples: cada banda seleciona sete canções da outra e as regrava como bem entender, dando o seu toque pessoal e fazendo uma reinterpretação única. Se no caso de Raimundos x Ultraje a Rigor o resultado ficou apenas divertido e curioso, no que diz respeito ao embate entre Nação Zumbi e Mundo Livre S/A, as duas mais emblemáticas bandas do chamado movimento manguebeat de Recife (PE), a obra final beira o genial – porque ambas as bandas mergulham de cabeça na missão e se arriscam a ponto de tornarem algumas das músicas praticamente irreconhecíveis e, ainda assim, tão deliciosas quanto as originais. 

Quem abre os trabalhos é Fred 04 e a galera do Mundo Livre – cujo cavaquinho leve e descontraído já dá um tratamento todo diferente para "A Cidade", faixa inicial da bolacha que ganha ares de sambinha maroto. Num contexto geral, dá para dizer que Fred se arrisca ao diminuir justamente a característica mais marcante da Nação, que é o seu poderio sonoro, sua percussão marcante e suas guitarras envenenadas, adicionando no lugar uma dose extra de groove e malícia. Sua versão para "Samba Makossa", por exemplo, segue inevitavelmente pelo lado do samba que o título da música usa, criando uma roda de samba com pitadas de eletrônico que, pasmem, em dado momento remete a um certo Jorge Ben. Em "Rios, Pontes e Overdrives", o sambinha praiano é interrompido apenas no refrão, que surpreendentemente recebe uma guitarra furiosa, um tanto punk, apenas para voltar a desembocar no cavaquinho de Fred, como se nada tivesse acontecido. 

O grande momento do Mundo Livre – e do disco como um todo, sendo totalmente honesto – no entanto, fica para a interpretação para uma das canções mais pesadas e avassaladoras da Nação, "Meu Maracatu Pesa uma Tonelada". Com coragem e talento, Fred 04 dá à canção uma roupagem que lembra a de uma banda indie inglesa, do tipo que flerta com sonoridades eletrônicas. E com um coral de vozes botando pra quebrar raivosamente no refrão, mas sobre uma base quase robótica, eis que a nova versão não perde em nada no que diz respeito a peso e força para aquela interpretada por Jorge Du Peixe e seus compadres. O Mundo Livre S/A deve pensar seriamente em acrescentar esta música em caráter definitivo ao seu setlist daqui pra frente, aliás. 

Era inevitável que o processo meio que se invertesse quando a Nação entrasse em cena para dar a sua cara para as faixas originalmente gravadas pelo Mundo Livre S/A. E quando se ouve "Livre Iniciativa" ficar mais grave, mais corpulenta, mais cheia de percussão do que o samba despretensioso de outrora, já dá para ter uma noção da viagem que se segue. O que dizer então dos tambores que, no pano de fundo, dão uma vibração étnica absolutamente diferente para a doce e graciosa "Musa da Ilha Grande"? 

Já a veia roqueira original de "Seu Suor é o Melhor de Você" é transformada pela Nação em uma vibração suja meio black, forte candidata a integrar a trilha sonora de um dos filmes do Quentin Tarantino. E enquanto a sensacional "O Velho James Brown Já Dizia" do Mundo Livre tem um tecladinho que fala diretamente com a cena do mundo tecnobrega, a Nação pisou no freio e fez uma espécie de marchinha, que poderia facilmente tocar no efervescente e tradicional carnaval de rua de Olinda. Neste segundo ato, sobressai-se ainda "Bolo de Ameixa", tradicional samba-rock do Mundo Livre que, nas mãos da Nação, recebe uma espécie de camada sonora extra – o ritmo repleto de suíngue continua, mas Lúcio Maia faz questão de acrescentar a sua guitarra poderosa, dando-lhe um teor quase metálico. 

Este novo Embate do Século vai gerar, sem dúvida, mais do que uma turnê conjunta simplesmente imperdível, mas também um desafio dos mais complicados para as próximas duas bandas que toparem o duelo, já que a barra de qualidade agora está elevadíssima. Para elas, muito boa sorte! :)

Nota 9

Tracklist:
1. A Cidade - Interpretada por Mundo Livre S/A
2. A Praieira - Interpretada por Mundo Livre S/A
3. Etnia - Interpretada por Mundo Livre S/A
4. Meu Maracatu Pesa Uma Tonelada - Interpretada por Mundo Livre S/A
5. No Olimpo - Interpretada por Mundo Livre S/A
6. Rios, Pontes e Overdrives - Interpretada por Mundo Livre S/A
7. Samba Makossa - Interpretada por Mundo Livre S/A
8. Livre Iniciativa - Interpretada por Nação Zumbi
9. Musa da Ilha Grande - Interpretada por Nação Zumbi
10. Bolo de Ameixa - Interpretada por Nação Zumbi
11. Girando em Torno do Sol - Interpretada por Nação Zumbi
12. Pastilhas Coloridas - Interpretada por Nação Zumbi
13. Seu Suor é o Melhor de Você - Interpretada por Nação Zumbi
14. O Velho James Brown Já Dizia - Interpretada por Nação Zumbi
Por Thiago Cardim

Comentários

  1. Bela resenha. Adoro as duas bandas. Ainda não ouvi o álbum, mas, pela resenha, deu para ter uma ideia do resultado final.

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  2. Muito bom.
    Mostra bem o revival dos anos 90 começando.

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