Permitam-me a liberdade de uma crítica impressionista (e, no cenário da crítica musical brasileira, uma análise mais rigorosa sobre o rock aqui feito nas últimas décadas seria muito bem-vinda, embora eu não tenha condições de empreendê-la agora). As linhas de força do rock brasileiro da década de 2010, mas, em alguma medida, também dos anos 2000, certo apelo folk e indie, alguma atmosfera altamente pretensiosa – penso aqui, sobretudo, na linhagem de bandas que surgiram à esteira da delicadeza pop de nomes como o Vanguart e A Banda Mais Bonita da Cidade –, carregam consigo o que considero uma higienização do estilo. Explico: em termos do que se passou no mainstream, os anos 1990 elevaram a voltagem lírica do rock nacional a um patamar de choque ou adesão, de atração e repulsa, e isto para o bem e para o mal. Da crítica social em bandas como Nação Zumbi e O Rappa à defesa incondicional da legalização da maconha no Planet Hemp, passando pela crônica machista ou, melhor dizendo, pela eleição do universo machista como tema no hardcore dos Raimundos, o rock brasileiro do período vivia em meio às chamas de uma expressão inflamável. Da virada do milênio até aqui, porém, generalizando e nivelando o que no gênero surgiu com maior expressão (mas consciente de que existem exceções), o que se viu foi não apenas o seu ostracismo midiático e rejeição pelas FMs, mas, sobretudo, um processo de esmaecimento das inconveniências características do gênero – qual seja, seu espírito de rebeldia e contestação, de espinha de peixe descendo pela goela –, que se transformou num mar de bom mocismo e amenidades. Não estou dizendo que a influência de uma banda como Los Hermanos, último grande fenômeno do rock brasileiro (se bem que cultuado na mesma medida em que desprezado), tenha eliminado a dimensão crítica do rock BR. É evidente que ela ainda existe. O que tento formular aqui – de forma ligeira e, como dito, impressionista – é que o viés crítico presente à maior parte das principais bandas de rock da atualidade, de modo até contraditório, perdeu o chão do social: confinadas aos nichos, falam o que a juventude de classe média que os acompanha já está cansada de saber e ouvir e, no afã de causarem boa impressão diante de um público com discurso altamente polido pela correção política, podaram de sua arte a verdade última da imperfeição humana (o que, desde um ponto de vista criativo, é ainda mais grave e dramático). Daí que, neste mundo de fofuras e bonitezas, tudo é amor, tudo é altruísmo, tudo é luta por um mundo melhor. Mas onde está o ser humano real – que sente raiva e ódio e se desespera e que precisa se esforçar para ser melhor porque está quase sempre cometendo equívocos –por trás dessa maquiagem das boas almas?
Este longo e provocativo parágrafo inicial só consta nesta resenha para situar a posição da banda Cadillac Dinossauros dentro desta conjuntura. Antes de qualquer coisa, frise-se que o power trio paranaense não tem nada que ver com aquilo – seu rock é visceral, cheio de energia, coalhado por empolgantes refrãos e por um furacão instrumental que se permite a tudo, menos a preguiça. Sediada em Ponta Grossa, interior do Paraná, a banda já conta com quatro discos de estúdio e acaba de lançar seu mais recente trabalho, Disco Riscado, disponível na íntegra pelo youtube e plataformas digitais. É sobre ele que me concentro agora.
Contrastando com a atmosfera de Pretobranco, seu antecessor imediato, cuja influência decisiva do Black Sabbath dos primeiros discos moldou uma sonoridade mais carregada e soturna flertando com o stoner rock, em seu novo trabalho, embora mantendo os dois pés bem firmes na metralhadora de riffs sabáticos, os Cadillacs partiram para uma aventura sonora mais radiante, quase solar, que equilibra o peso de seu hard rock (e aqui, por favor, entendam o termo em sua mais ampla acepção) com a vibração de outros ritmos que, camuflados ou não, estão sempre presentes à paleta dos músicos: o groove do funk, certo débito para com a massa sonora do punk rock, a irreverência e o humor do mestre Raul Seixas (e quem conhece bem a banda sabe que a ironia é um aspecto crucial de sua identidade, em que pese a seriedade lírica do álbum anterior e, de alguma maneira, deste também). Isto se revela desde a canção de abertura, "No Porão", cujo teor crítico vem revestido de uma positividade sonora bastante cara ao trio paranaense, e se mantém como uma espécie de paisagem espiritual por todo o álbum, em especial em faixas como "Dionny Dublê" e "Corre". Por meio deste recurso, temas tradicionalmente melancólicos, como o fracasso, são levantados pela vibração dos amplificadores no último volume e pela linguagem leve, desprovida de gordura melodramática, como nos versos de "Perdendo Feio": "Faz tempo que eu perco / eu perco o tempo inteiro / Já me perdi nas contas do que perco e nem me lembro".
Mas isto não é tudo. Se ao início desta resenha defendi a necessidade de novas e generosas doses de vida e verdade no novo rock brasileiro, é porque estes elementos transbordam do som da Cadillac Dinossauros. A linguagem das ruas – tão urgente ao estilo, caso ainda se reivindique a ele alguma relevância ou atualidade – aparece em faixas como "Aquela Fita", tematizando a desavença (e com um dos melhores refrães do disco), "Corre", ponto alto da verve funk e suingada do grupo, e "Outro Lugar", que aborda a inconstância e imprevisibilidade da vida em versos como "Se algum dia eu for embora / Pra não mais te ver / E for morar numa quebrada / Em que você tem medo de se meter".
Na mesma senda, em Disco Riscado se escancara o fato de que um bom disco de rock não tem nada que ver com um manual de boas maneiras – isso a Cadillac sabe e ensina. Em "Já Estive na Pior", por exemplo, como não sentir um gelo ou amortecimento ao receber a piscadela de quem renasceu do pó? Isso, porém, ocorre de forma inteligente e sagaz, voando alto, paralelo a Deus. Por tudo isso, vale dizer que, às vezes, estar na pior também rende bons frutos – e quem não sabe que ele, o rock brasileiro, já esteve melhor estando na pior? Nada disso, evidentemente, é sentido à temperatura ambiente do bom mocismo a que antes aludi. Outro ponto para Billy, Hugo e Davi.
Se o disco contempla as baladas? Sim, e elas são um ponto altíssimo do trabalho. A competência do trio para compor músicas cadenciadas, com instrumental menos explosivo e um tom mais emocional, já foi provada pelos álbuns anteriores em canções como "Fora do Trilho" e "O Fim". Em Disco Riscado, o grupo exercita esta verve mais melódica em "Animal Emocional" e "Quebra-cabeça" – esta com direito a inspirado solo de guitarra e uma belíssima letra, bastante reveladora do que aqui venho frisando desde o início: "Quando eu vivo eu vivo pleno / Experimento elixires e venenos / Um passo em falso e outro adiante / Mas cada passo é sempre uma constante". Assim como nos rocks mais pesados, nenhuma das baladas comete excessos ou pieguismos, ao contrário, elevam a patamares ainda mais altos a maturidade musical do grupo. Um contraponto muito eficiente à intensidade dos rocks mais clássicos, como "Cientista Social", cujo eco de uma banda como Grand Funk Railroad é irresistível, e dos mais pesados como "A Direção em que a Cabeça Gira" e "Perdendo Feio", onde a influência de Tony Iommi e de sua trupe fala mais alto (ouça o riff da última e comprove).
O disco se encerra com a canção-título, um breve instrumental que assenta o pó levantado no percurso e bota as ideias de quem ouviu o álbum no lugar. Dela, enfim, podemos arriscar uma visão de conjunto. Por razões de diversas ordens, não cabe aqui uma análise mais detida sobre as qualidades que o trio apresenta no instrumental preciso e bem dosado. Uma boa produção sempre ajuda, e a de Disco Riscado está impecável, mas ninguém tira da cartola do estúdio um solo de baixo como o de "Aquela Fita" – Hugo é um baixista de alto calibre, que faz a cozinha com a excelente companhia de Billy, sempre seguro sem ser previsível nas baquetas. Os vocais de Davi, vale o registro, soam melhores a cada disco, melodiosos e técnicos sem perder o feeling e a potência característica dos grandes vocais do estilo. Mais um destaque dentro de uma cena em que (perdoem a insistência na implicância) a maior parte dos vocalistas parece buscar uma identidade frágil, meio convalescente, prontos para desmoronar ou partir no meio logo ao primeiro grito que cometerem.
Ora, neste vagão há espaço para todos, mas não esqueçamos que o rock tem gravado a ferro na sua história a irreverência, a energia, a intensidade e a rebeldia. Em uma só expressão, é um gênero afeito ao risco (ou, para me valer de um clássico titânico, não tem medo de passar o ridículo) – qualidades que o Disco Riscado vai buscar nas grandes fontes do estilo e recria com um frescor que é marca registrada do grupo, perceptível desde sua identidade visual (na capa do álbum, os três músicos dão a cara a tapa, numa sacada de quem se mostra atento em profundidade ao que está acontecendo no mundo da música). Tivéssemos ainda a finada MTV como um canal de informação musical, talvez algum VJ da casa, ao escutar o som da Cadillac Dinossauros, acabasse caindo no cacoete um tanto patético de reconhecer no talento da banda uma nova promessa de salvação do rock. Não vou incorrer neste equívoco. Seja porque, neste exato momento, muitas outras bandas de inegável competência estão desenvolvendo um excelente trabalho, o mais das vezes sem dispor de meios para alcançar um público mais amplo, seja também porque, no rock brasileiro, a busca pela salvação já mostra incontornáveis sinais de cansaço e derrota: melhor seria, agora, que os roqueiros se permitissem a uma folga nessa missão, desviando do caminho e indo ao boteco mais próximo, para arranjar alguma confusão. Que da salvação já estamos cheios e saturados – depois de duas décadas falando baixo, o que o autor desta resenha espera mesmo de um possível novo rock nacional é o berro na madrugada, o tapa na cara, o disco riscado: é o risco da condenação.
Por Marco Aurélio de Souza
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