Tommy, do The Who, é um marco na história do rock e um dos álbuns mais ambiciosos já criados no gênero. Com sua ousada estrutura narrativa e conceito coeso, o disco consolidou o formato da ópera-rock, posicionando a banda britânica na vanguarda musical do final dos anos 1960. Lançado em 23 de maio de 1969, o álbum vai além de uma simples coleção de músicas: trata-se de uma obra conceitual que narra uma história complexa, sombria e catártica, permeada por temas como trauma, superação e espiritualidade.
A história gira em torno de Tommy Walker, um garoto que se torna surdo, mudo e cego após testemunhar um crime traumático na infância – o assassinato de seu pai por um amante de sua mãe. Após esse evento, ele se retira completamente do mundo, vivendo em isolamento sensorial. Durante sua jornada, Tommy sofre abusos e negligência, mas eventualmente descobre uma forma de se expressar e se conectar com o mundo: através do pinball.
Essa habilidade o transforma em um fenômeno — o "Pinball Wizard" — e o conduz a uma espécie de status messiânico. No entanto, ao recuperar os sentidos e tentar compartilhar sua experiência espiritual com os outros, ele é rejeitado por aqueles que não compreendem sua mensagem. A narrativa de Tommy é, portanto, uma crítica social, uma alegoria espiritual e uma reflexão sobre fama, idolatria e alienação.
O álbum é composto por 24 faixas que se entrelaçam como capítulos de um romance musical. Entre os destaques estão "Overture". A introdução instrumental apresenta os temas principais que reaparecerão ao longo da obra, definindo o tom dramático do álbum. "1921" estabelece o evento traumático que desencadeia a condição de Tommy e marca o início da narrativa. "Amazing Journey" e "Sparks" exploram o mundo interno de Tommy, com atmosferas psicodélicas e instrumentação inovadora. "Christmas" levanta questões existenciais, perguntando o que acontecerá com Tommy caso permaneça preso ao silêncio espiritual.
"The Acid Queen", interpretada por Tina Turner na adaptação cinematográfica de 1975, representa uma tentativa desesperada dos pais de "curar" Tommy com drogas e experiências sensoriais extremas. "Pinball Wizard", talvez a faixa mais icônica do disco, foi escrita às pressas para agradar ao crítico musical Nik Cohn, que adorava fliperamas. Tornou-se um dos maiores sucessos do The Who e um clássico do rock. "I'm Free" simboliza a libertação de Tommy e a tentativa de guiar outros em sua jornada. "We're Not Gonna Take It / See Me, Feel Me" culmina a ópera com a rejeição de Tommy como líder espiritual, encerrando a história com ambiguidade e reflexão.
Embora o The Who já flertasse com conceitos longos em faixas como “A Quick One, While He’s Away” (1966), foi com Tommy que a banda consolidou o formato da ópera-rock, algo praticamente inédito no rock até então. Pete Townshend, principal compositor do álbum, desenhou meticulosamente a história e os temas musicais, utilizando repetições melódicas e motivos líricos que conferem coesão à obra — elementos típicos da música erudita, transpostos com maestria ao universo do rock.
O sucesso de Tommy foi avassalador. A crítica reconheceu a ousadia do projeto, e o público respondeu com entusiasmo. O álbum pavimentou o caminho para outras obras ambiciosas no rock, como The Wall do Pink Floyd e Quadrophenia (também do The Who). Além disso, Tommy foi adaptado para o cinema (1975), para os palcos da Broadway (1993) e serviu de inspiração para inúmeros artistas e bandas progressivas e conceituais.
Mais de cinco décadas após seu lançamento, Tommy permanece como um dos álbuns mais influentes da história do rock. Seu legado vai além da música: ajudou a elevar o rock à categoria de arte respeitável e madura, capaz de contar histórias profundas, filosóficas e provocadoras. A ópera-rock de Pete Townshend e companhia desafiou os limites do que um álbum poderia ser — e, ao fazer isso, transformou para sempre o papel do rock na cultura popular.
Tommy é mais do que um clássico: é um testemunho da ambição artística do rock em sua era mais criativa. Um álbum para ser ouvido de ponta a ponta, com atenção e mente aberta, como se fosse — e de fato é — uma jornada épica em forma de música.
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