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Mudanças de voz, mudanças de rumo: o Angra em Secret Garden (2014)

Secret Garden (2014) ocupa um lugar peculiar na discografia do Angra. Lançado no fim de 2014 no Japão e no início de 2015 no restante do mundo, o álbum representa, ao mesmo tempo, um encerramento e um recomeço. É o último registro de estúdio com Kiko Loureiro antes de sua saída para o Megadeth, e o primeiro com Fabio Lione nos vocais e Bruno Valverde na bateria. Esse caráter de transição ajuda a explicar tanto os acertos quanto as irregularidades do disco. Produzido por Jens Bogren, com pré-produção de Roy Z, Secret Garden aposta em um som moderno, limpo e poderoso, alinhado ao que havia de mais sofisticado no metal melódico da época. As guitarras de Kiko Loureiro e Rafael Bittencourt seguem técnicas e cheias de detalhes, com solos precisos e riffs que equilibram peso e melodia. A cozinha formada por Felipe Andreoli e Bruno Valverde garante solidez, ainda que o álbum não busque, em momento algum, a agressividade extrema. A estreia de Fabio Lione é um dos pontos mais debatidos. Se...
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Hunky Dory (1971): o elo perdido entre o início e o mito de David Bowie

Hunky Dory (1971) é o disco em que David Bowie, definitivamente, encontra a própria voz. Não apenas no sentido literal, mas artístico, conceitual e estético. O álbum deixa para trás as tentativas ainda fragmentadas do fim dos anos 1960 e aponta com clareza para o artista que, poucos meses depois, redefiniria os limites do rock com The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars (1972). Diferente do impacto visual e do peso elétrico que marcariam Ziggy , Hunky Dory é, acima de tudo, um disco guiado pelo piano. As composições se apoiam fortemente nesse instrumento, criando uma atmosfera mais íntima, teatral e, ao mesmo tempo, sofisticada. É um álbum de canções no sentido mais clássico do termo, mas que já carrega em suas entrelinhas a inquietação artística e a ambiguidade que se tornariam marcas registradas de Bowie. Logo na abertura com “Changes” , Bowie apresenta o tema central do disco: transformação. A canção é quase um manifesto, tanto lírico quanto musical, sob...

Eric Clapton e a arte da contenção em Slowhand (1977)

Slowhand (1977) costuma ser citado como o álbum que consolidou, de forma definitiva, a carreira solo de Eric Clapton nos anos 1970. Entre o impacto mais imediato de 461 Ocean Boulevard (1974) e projetos posteriores menos consensuais, este disco representa o ponto em que Clapton encontra um equilíbrio raro entre identidade artística, apelo popular e maturidade musical. Produzido por Glyn Johns, Slowhand aposta em uma estética limpa, direta e sem excessos. A produção evita camadas desnecessárias e coloca a guitarra de Clapton sempre a serviço da canção, não da pirotecnia. O famoso “menos é mais” aqui não é discurso: é método. Cada frase soa pensada, cada silêncio tem peso, e o timbre seco, quente e muito bem definido ajuda a explicar por que o álbum envelheceu tão bem. O disco navega com naturalidade entre blues, rock e pop sofisticado. “Cocaine”, composição de J.J. Cale, abre o álbum com uma confiança quase displicente, sustentada por um groove econômico e irresistível. Já “Lay D...

Axis: Bold as Love (1967): o momento em que Jimi Hendrix assume o controle do próprio universo

Entre o impacto imediato de Are You Experienced (1967) e a ambição quase sem limites de Electric Ladyland (1968) , Axis: Bold as Love (1967) costuma ocupar um lugar curioso na discografia de Jimi Hendrix. Para alguns, é o “disco do meio”. Porém, ele é justamente o ponto em que Hendrix começa a dominar por completo o próprio universo criativo não mais apenas como guitarrista revolucionário, mas como compositor, arranjador e arquiteto sonoro. Axis aprofunda a psicodelia apresentada no debut, mas faz isso de forma mais controlada, quase elegante. Há menos urgência juvenil e mais consciência estética. A guitarra continua sendo o centro de tudo, claro, mas agora ela serve às canções, às melodias e às atmosferas, e não apenas ao choque imediato. Logo na abertura, “Up from the Skies” deixa claro que este não será um disco de explosões constantes. O clima etéreo, o groove quase jazzístico e o uso criativo do wah-wah mostram um Hendrix interessado em textura, espaço e sutileza. “Spanish ...

Um passo fora do óbvio: V (1991) e a maturidade da Legião Urbana

V (1991) ocupa um lugar peculiar e muitas vezes incompreendido na discografia da Legião Urbana. Vindo na sequência direta de As Quatro Estações (1989) , um dos maiores sucessos comerciais da música brasileira, o álbum soa menos como uma tentativa de continuidade e mais como um gesto deliberado de ruptura. Aqui, a banda desacelera, fecha-se em si mesma e entrega um disco introspectivo, denso e, em vários momentos, desconfortável. O Brasil atravessava um período de instabilidade econômica e Renato Russo vivia uma fase pessoal extremamente delicada. Essas tensões não aparecem de forma explícita ou panfletária, mas permeiam todo o álbum, seja na atmosfera melancólica, seja na sensação constante de desgaste emocional. V não busca catarse fácil nem refrões feitos para o rádio: ele exige tempo, atenção e disposição do ouvinte. Trata-se de um dos trabalhos mais ousados da Legião. As canções se estendem, os arranjos ganham camadas pouco usuais e há uma clara intenção de explorar climas qu...

London Calling (1979): quando o The Clash expandiu o punk para além dos próprios limites

Lançado no apagar das luzes de 1979, London Calling é o disco em que o The Clash se torna uma das vozes centrais da música popular do fim do século 20. Ainda carregado de urgência, ruído e confronto, o álbum amplia radicalmente o vocabulário do grupo, incorporando reggae, ska, rockabilly, R&B e pop sem jamais soar disperso. Ao contrário, tudo parece guiado por uma mesma tensão: a sensação de que algo estava ruindo social, política e culturalmente, e precisava ser narrado com clareza e força. A produção de Guy Stevens contribui para esse clima quase caótico, com um som cru, vibrante e frequentemente à beira do colapso. Não há polimento excessivo nem concessões estéticas óbvias. O que se ouve é uma banda tocando como se cada faixa fosse urgente demais para esperar. Joe Strummer canta como um cronista do fim de uma era, Mick Jones equilibra melodia e aspereza, e a dupla Paul Simonon e Topper Headon constrói a base rítmica que permite ao disco transitar com naturalidade entre estilo...

Ascension (2025): o Paradise Lost em sua forma mais consciente

Poucas bandas conseguiram atravessar três décadas de metal extremo, mudanças de cena e transformações tecnológicas sem diluir completamente a própria identidade. O Paradise Lost é uma dessas exceções. Em Ascension (2025), seu 17º álbum de estúdio, o grupo não apenas reafirma essa identidade como demonstra um entendimento raro de seus próprios limites e, principalmente, de suas forças. Lançado pela Nuclear Blast, o álbum se insere diretamente na fase mais coesa da discografia recente da banda, iniciada com The Plague Within (2015). Desde então, o Paradise Lost vem operando em um território muito específico: a síntese entre o peso do doom/death inicial e a sofisticação melódica adquirida nos anos 1990, sem recaídas nos excessos eletrônicos ou industriais que marcaram parte da produção dos anos 2000. Ascension aprofunda essa equação, mas o faz de maneira menos agressiva e mais contemplativa do que seus antecessores imediatos. A produção de Greg Mackintosh é central para essa leitur...

Por que colecionamos? Uma viagem pela história, pela mente e pela paixão por objetos

Colecionar é um hábito tão antigo quanto a própria civilização. Muito antes de existir a ideia moderna de coleção, o ser humano já reunia objetos raros, simbólicos ou simplesmente belos como forma de preservar memória, afirmar identidade e dar sentido ao mundo ao redor. O colecionismo não nasceu da necessidade humana de ordenar, contar histórias e criar vínculos. Do ponto de vista histórico, o ato de colecionar pode ser rastreado até a Antiguidade, quando reis e sacerdotes reuniam relíquias, artefatos religiosos e tesouros de guerra. Já na Europa do Renascimento surgiram os famosos Gabinetes de Curiosidades, espaços privados onde aristocratas e estudiosos organizavam fósseis, obras de arte, instrumentos científicos e objetos exóticos vindos de outras partes do mundo. Esses gabinetes não apenas expressavam poder e conhecimento, como também lançaram as bases dos museus modernos. Mas por que esse impulso persiste até hoje? A psicologia ajuda a explicar. Estudos e análises contemporâne...

The Wörld Is Yours (2010): o Motörhead no domínio absoluto do próprio território

Ao chegar ao 20º álbum de estúdio o Motörhead já não tinha nada a provar, e The Wörld Is Yours (2010) soa exatamente como a afirmação tranquila de quem conhece profundamente o próprio território. O disco dá sequência à fase mais estável da banda nos anos 2000, com produção de Cameron Webb e um som direto, seco e sem ornamentos desnecessários. Não há aqui qualquer tentativa de reinvenção. Lemmy Kilmister, Phil Campbell e Mickey Dee apostam no rock and roll pesado que sempre foi sua assinatura, equilibrando peso, velocidade e groove com uma naturalidade que poucas bandas longevas conseguem sustentar. O álbum funciona quase como um manifesto: o Motörhead não precisa surpreender, basta entregar exatamente o que promete. A abertura com “Born to Lose” estabelece o clima, enquanto “I Know How to Die” surge como um dos grandes momentos do disco, resumindo em poucos minutos a filosofia de vida que sempre atravessou a obra de Lemmy. “Get Back in Line” e “Outlaw” mantêm o disco em alta rotaç...

Por que o Led Zeppelin nunca voltou em uma turnê de reunião?

Desde o fim oficial do Led Zeppelin, em 1980, a pergunta nunca deixou de ecoar: por que a maior banda de rock da história jamais voltou para uma turnê de reunião? Ao longo das décadas, surgiram rumores, negociações, declarações contraditórias e algumas apresentações isoladas, mas nunca um retorno consistente à estrada. As razões são mais complexas do que parecem. O ponto central é, inevitavelmente, a morte de John Bonham. O baterista não era apenas um integrante: ele era o motor do Led Zeppelin. A própria banda deixou isso claro ao encerrar suas atividades logo após sua morte, afirmando que não conseguiria continuar “como era”. Qualquer reunião posterior sempre carregou esse peso simbólico. Tocar sem Bonham nunca foi algo tratado como natural. As experiências frustrantes das reuniões dos anos 1980 também deixaram marcas profundas. Apresentações como o Live Aid (1985) e o evento dos 40 anos da Atlantic Records (1988) foram amplamente criticadas, inclusive pelos próprios músicos. Pro...