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Vitalogy (1994) é o Pearl Jam em crise — e por isso mesmo em combustão

Depois do sucesso gigantesco de Ten (1991) e Vs. (1993) , o Pearl Jam entrou no estúdio fragmentado, cansado da fama e lutando em várias frentes: desgaste interno, conflito com a imprensa, a guerra contra a Ticketmaster e uma sensação geral de que tudo havia crescido rápido demais. Esse turbilhão não só molda o tom do disco como define sua personalidade: Vitalogy (1994) soa urgente, tenso, autoconsciente. É um álbum que mais parece um documento emocional do que um produto calculado. O resultado é um trabalho deliberadamente esquisito. A banda abre espaço para guitarras secas, arranjos magros e uma estética quase lo-fi em vários momentos — um contraste gigantesco em relação ao grunge massivo do início da década. “Corduroy”, por exemplo, resume perfeitamente o espírito da época: é um ataque direto à idolatria da indústria e ao incômodo de Eddie Vedder com a própria imagem pública. “Not for You” segue a mesma linha, cuspindo frustração em um formato que combina fúria punk e melodia tí...
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Presto (1989): a transição suave do Rush para os anos 1990

Presto marca um daqueles instantes em que o Rush decidiu mudar sem fazer alarde. Depois de uma década dominada por sintetizadores, timbres digitais e aquela estética high-tech que definiu o trio na metade dos anos 1980, o álbum chegou como uma curva suave na estrada: nada abrupto, nada chocante, mas suficientemente claro para mostrar que Geddy Lee, Alex Lifeson e Neil Peart queriam abrir novas janelas dentro de si mesmos. A presença de Rupert Hine na produção não é mero detalhe — ele atua como um reorganizador silencioso. Em vez de empurrar o Rush para mais experimentos eletrônicos, Hine ajuda a limpar o terreno, deixando as guitarras respirarem e devolvendo ao trio um senso de organicidade que havia se perdido entre samplers, sequencers e camadas de teclados. O resultado é um som mais enxuto, luminoso e, de certa forma, mais humano. Essa mudança fica evidente logo na abertura com “Show Don’t Tell”, um chute firme que apresenta o novo Rush: riffs mais presentes, linhas de baixo si...

Júlia – Aventuras de uma Criminóloga: Mythos Editora republica as edições 46 a 50 da série, a obra-prima silenciosa de Giancarlo Berardi

Poucas séries no quadrinho europeu conseguem manter, ao longo de décadas, a combinação de rigor técnico, densidade emocional e qualidade narrativa que J ú lia – Aventuras de uma Criminóloga apresenta desde 1998. Criada por Giancarlo Berardi, o mesmo autor por trás de Ken Parker , a HQ é um marco do policial contemporâneo — elegante, cerebral e profundamente humano. Nada nela é exagerado, estilizado ou espetacularizado. Em Júlia , o crime não é entretenimento: é consequência, trauma, ambiente e motivação. Júlia Kendall, a protagonista, foi pensada como uma criminóloga realista, longe de arquétipos heroicos. O visual inspirado em Audrey Hepburn ajuda a sublinhar esse caráter mais discreto, mas é o método — e não a aparência — que define a personagem. Júlia trabalha analisando comportamento, padrões emocionais, coerência das ações, evidências físicas e contexto social. O resultado é uma série que muitas vezes se aproxima mais de um estudo de caso do que de uma aventura policial conven...

Under a Blood Red Sky (1983): o retrato do U2 descobrindo o próprio gigantismo

Under a Blood Red Sky é o momento em que o U2 deixa de ser apenas uma promessa da virada dos anos 1970 para a década de 1980 e começa a assumir, diante das câmeras e do público, a própria vocação para o épico. Lançado em 1983, o disco captura a banda ainda jovem, politicamente carregada e emocionalmente elétrica, eternizando uma energia que, segundo a crítica da época, era o que realmente colocava o U2 no mapa. Há algo cru e urgente aqui — uma sensação de que cada música é tocada como se fosse a última, com o quarteto inteiro correndo atrás de uma grandeza que ainda não alcançou, mas já visualiza no horizonte. A força do álbum está justamente nessa fricção entre ambição e instinto. O repertório, costurado a partir de gravações em diferentes shows da turnê War (1983) , funciona como um retrato concentrado do U2 pré-estrelato global. A banda toca com intensidade quase marcial: Larry Mullen Jr. soa como um relógio militar, The Edge constrói paisagens inteiras com poucos acordes e muit...

A Night at the Opera: (1975) o disco em que o Queen reinventou a grandiosidade no rock

A Night at the Opera (1975) é o momento em que o Queen decide não apenas subir o volume, mas reinventar o próprio conceito de grandeza dentro do rock. É o disco em que a banda abandona qualquer tentativa de moderação e abraça de vez o maximalismo — musical, estético e emocional. O resultado é um dos álbuns mais importantes dos anos 1970 e um dos pilares da história do gênero. Lançado após o turbulento Sheer Heart Attack (1974) e sob enorme pressão financeira — o quarteto estava virtualmente quebrado e atolado em disputas contratuais — A Night at the Opera nasce de um cenário de crise total. E, como tantas vezes acontece na história do rock, é justamente dessa crise que surge a faísca para algo extraordinário. O Queen canaliza frustração, ambição e talento bruto em um turbilhão criativo que não encontra paralelo. O título, inspirado no filme dos Irmãos Marx, já entrega a postura: humor, teatralidade, caos organizado. E é nesse espírito que Freddie Mercury, Brian May, John Deacon...

Shin Zero Vol. 1: heroísmo em tempos de uberização dos super-heróis (2025, Comix Zone)

Shin Zero é o tipo de quadrinho que chama atenção antes mesmo da primeira página. Criado por Mathieu Bablet e Guillaume Singelin , e publicado no Brasil pela Comix Zone em edição caprichada, o álbum propõe uma releitura moderna — e inesperadamente madura — do imaginário sentai : os heróis coloridos, os monstros gigantes, as batalhas coreografadas e toda a explosão de cores que moldou gerações. Mas aqui, nada disso aparece da forma como lembramos. A trama parte de uma premissa simples e brilhante: vinte anos após a derrota do último Kaiju, os antigos heróis perderam a função . O mundo seguiu adiante, mas não para eles. Sem monstros para combater, os Sentai viraram trabalhadores precarizados, vivendo de bicos mal-remunerados num cenário urbano congestionado e indiferente. O heroísmo, antes glamourizado, hoje é só mais uma profissão mal valorizada. É dentro desse contexto que acompanhamos um grupo de jovens — Warren, Nikki, Héloïse, Satoshi e Sofia — tentando se equilibrar entre re...

AC/DC e a era dos canhões: o poder e a estranheza de For Those About to Rock (1981)

For Those About to Rock (We Salute You) (1981) é um disco que vive numa zona estranha dentro da discografia do AC/DC. Sucessor direto do monolito Back in Black (1980) — um dos álbuns mais vendidos de todos os tempos — ele nasceu condenado a carregar um peso impossível: como seguir um dos maiores fenômenos do rock sem parecer uma versão diluída de si mesmo? Não havia resposta fácil. Mas, em vez de tentar repetir a fórmula, o AC/DC entregou um álbum mais sombrio, pesado e ritualístico, com uma atmosfera que aponta para um grupo ainda lidando com a morte recente de Bon Scott, o impacto meteórico do sucesso e a necessidade de se firmar com Brian Johnson no vocal. Produzido novamente por Mutt Lange, For Those About to Rock é o fechamento de uma trilogia que redefiniu o som da banda entre 1979 e 1981. Se em Highway to Hell eles encontraram seu shape definitivo e em Back in Black elevaram tudo à estratosfera, aqui surge um AC/DC mais denso, quase cerimonial. Lange trabalha as guitarras...

Baltimore Omnibus Vol. 1: uma obra-prima sombria do criador de Hellboy (2025, Mythos Editora)

Baltimore Omnibus Vol. 1 marca uma das incursões mais sombrias e atmosféricas já criadas por Mike Mignola fora do universo de Hellboy. Ao lado do escritor Christopher Golden e do artista Ben Stenbeck, Mignola constrói uma narrativa contundente, definida por um senso de tragédia permanente e pela luta interminável entre humanidade e monstruosidade. A história acompanha Lorde Henry Baltimore, um soldado marcado pela Primeira Guerra Mundial e devastado pela perda da família, assassinada pelo vampiro Haigus. Movido por dor e vingança, Baltimore atravessa uma Europa alternativa, onde a guerra cedeu lugar a uma praga que se espalha pelo continente e abre caminho para a ascensão de criaturas das trevas. Esse cenário — metade histórico, metade pesadelo — é um dos grandes triunfos da obra: vilarejos arruinados, portos infectados, zepelins, desertos de cadáveres e uma sensação constante de que algo está sempre espreitando. A parceria entre Mignola e Golden cria uma narrativa mais literária ...

Hardwired… To Self-Destruct (2016): o disco que recolocou o Metallica nos trilhos

Hardwired… To Self-Destruct (2016) chegou com a responsabilidade de recolocar o Metallica nos trilhos depois do turbulento St. Anger (2003) e do ambicioso Death Magnetic (2008) . Era o primeiro álbum da banda em oito anos e o primeiro em muito tempo que não parecia movido por crise interna, culpa criativa ou necessidade de provar algo a alguém. De certa forma, é o trabalho mais confortável do Metallica desde os anos 1990 — e, paradoxalmente, justamente por isso ele soa tão seguro de si. A banda atravessava uma fase estável: turnês gigantes, reputação consolidada e uma dinâmica interna mais saudável. Sem a pressão de retornar ao thrash (como em Death Magnetic ) ou desconstruir a própria imagem (como em Load ), o Metallica pôde simplesmente soar como o Metallica. Isso explica a estética híbrida do álbum: ele visita o passado sem nostalgia barata, mas também assume a faceta pesada e moderna que o grupo lapidou ao longo dos anos. Musicalmente, Hardwired… To Self-Destruct funciona co...

Audioslave (2002): entre RATM e Soundgarden, o disco que uniu mundos e criou outro

O primeiro disco do Audioslave nunca soou como um simples encontro entre Chris Cornell e os ex-integrantes do Rage Against the Machine. Lançado em novembro de 2002, o álbum nasceu de um momento de transição intensa para todos os envolvidos: Cornell tinha acabado de encerrar o Soundgarden e atravessava um período pessoal turbulento, enquanto Tom Morello, Tim Commerford e Brad Wilk buscavam um novo vocalista após a saída de Zack de la Rocha. O resultado poderia ter sido um Frankenstein corporativo criado pela indústria – e muita gente acreditou nisso na época –, mas o que se ouve é outra coisa: um quarteto tentando descobrir sua própria identidade no meio da tempestade. O processo foi tenso, cheio de idas e vindas, e influenciado por duas forças principais: a visceralidade do RATM e a melancolia melódica que Cornell carregava desde Superunknown (1994) . As faíscas surgiam justamente da colisão entre esses dois mundos. Morello assume a dianteira com timbres tortos, riffs angulares e efe...