Júlia: Aventuras de uma Criminóloga – O Segredo de Stan (Giancarlo Berardi, 2025, Mythos Editora)


Poucos roteiristas podem se orgulhar de terem criado dois personagens tão marcantes quanto Giancarlo Berardi. O italiano é o autor por trás de Ken Parker, um clássico incontornável dos quadrinhos de faroeste, e de Júlia Kendall, a mais importante personagem feminina da editora Bonelli. Ambos são um prato cheio para quem aprecia HQs bem escritas, com tramas que fogem do convencional.

Ken Parker está sendo publicada no Brasil em uma coleção de luxo com 50 volumes em capa dura, lançada pela Mythos Editora. Já Júlia conta com duas séries em andamento, também pela Mythos: uma republica a série original até a edição italiana nº 200 (anteriormente publicada em formatinho pela própria editora); a outra, intitulada Júlia: Aventuras de uma Criminóloga, dá continuidade à coleção a partir da edição 201.

Júlia Kendall é uma criminóloga que atua como consultora da polícia de Garden City, cidade fictícia localizada em algum lugar dos Estados Unidos. Cada edição apresenta um caso diferente, em histórias que se aproximam do que hoje chamamos de true crime — crimes inspirados em situações reais, que desafiam tanto o raciocínio lógico da protagonista quanto o do leitor. Para escrever a série, Berardi mergulhou fundo no universo da criminologia, chegando inclusive a se especializar no assunto. Isso se reflete em roteiros sólidos, realistas e cuidadosamente construídos.

Na edição nº 28 de Júlia: Aventuras de uma Criminóloga, temos a história publicada originalmente na Itália em agosto de 2017, na edição 227 da revista Julia. O Segredo de Stan, com roteiro de Berardi e Lorenzo Calza e arte de Luca Bonessi e Valerio Piccioni, começa com a descoberta de um corpo por estudantes de uma universidade. A investigação inicial acaba se conectando ao desaparecimento de Stan, jovem assistente do mecânico de confiança de Júlia. A partir daí, mergulhamos em uma trama que envolve uma seita peculiar, que defende a rejeição da tecnologia e propõe um retorno a tempos mais “puros” — com hábitos simples e naturais. Apesar de algumas práticas parecerem inofensivas ou até saudáveis, como o consumo de alimentos não industrializados, outras são profundamente problemáticas, como a repressão da liberdade de expressão e a imposição da força como método de controle.

Mais do que construir um bom mistério, Berardi utiliza a HQ para refletir sobre temas como submissão e o desejo humano de pertencer a grupos com ideologias semelhantes. Esse sentimento de pertencimento não apenas valida nossas crenças e comportamentos, mas também reforça nossa identidade enquanto indivíduos. A discussão proposta pela trama é especialmente pertinente nos tempos atuais, em que a aparência de autenticidade muitas vezes é mais valorizada do que a essência.

A arte segue o padrão da série: detalhada, expressiva e com uma narrativa gráfica fluida. O roteiro mantém o alto nível já esperado de Berardi, com diálogos inteligentes e um ritmo envolvente. A edição, traduzida por Júlio Schneider, tem 130 páginas no formato italiano tradicional e reforça o motivo pelo qual Júlia continua sendo uma das melhores séries policiais dos quadrinhos europeus.

Com O Segredo de Stan, Berardi mais uma vez demonstra sua habilidade de aliar entretenimento de qualidade com reflexão crítica. A história vai além do mistério policial, oferecendo ao leitor uma experiência rica em conteúdo humano, psicológico e social. Para os fãs da série Júlia, esta edição é mais uma prova da longevidade e relevância da personagem. Para novos leitores, é um excelente ponto de entrada para conhecer uma das obras mais sofisticadas e instigantes dos quadrinhos europeus contemporâneos.


Comentários