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Acender uma Fogueira: Chabouté adapta Jack London em uma jornada congelante e sensorial (2025, Pipoca & Nanquim)


Inspirado no célebre conto de Jack London, Acender uma Fogueira é mais uma prova da maestria narrativa de Chabouté, autor francês conhecido por explorar a solidão, a introspecção e o poder das imagens em suas histórias. Publicado no Brasil pela editora Pipoca & Nanquim — que já trouxe outras obras do autor como Solitário, Um Pedaço de Madeira e Aço e Henri Désiré Landru —, o quadrinho é uma adaptação poderosa e angustiante da luta do ser humano contra a força implacável da natureza.

A trama é simples em sua superfície, mas profundamente simbólica: um homem viaja sozinho, acompanhado apenas por seu cachorro, pelas inóspitas terras geladas do Klondike, no Canadá, tentando sobreviver ao frio extremo. Trata-se de uma referência direta à corrida do ouro de 1896, quando milhares de norte-americanos, impulsionados pela crise econômica e pela esperança de enriquecimento rápido, migraram para a região em busca das promissoras minas recém-descobertas. Eram, em sua maioria, pessoas sem qualquer preparo ou experiência, confrontadas com uma realidade brutal e frequentemente letal.

Neste cenário desolado, Chabouté faz do frio o verdadeiro protagonista da história — ou, melhor dizendo, o antagonista. Não há vilões ou monstros fantásticos: o frio é o inimigo invisível, onipresente e implacável, que corrói o corpo e a sanidade do homem. O clima se impõe como uma força da natureza indiferente à vontade humana, transformando cada tentativa de acender uma fogueira em um ato de desespero e resistência.

Narrativamente, Acender uma Fogueira foge dos padrões tradicionais. Não há diálogos, apenas recordatórios que funcionam como os pensamentos e a consciência do protagonista, além de textos que intensificam o que as imagens estão mostrando. Com o passar das páginas e o agravamento de sua condição física, essas frases tornam-se menos racionais, mais fragmentadas, refletindo a perda gradual de lucidez diante da hipotermia e do medo. É uma narrativa silenciosa e sufocante, em que o branco da neve domina os quadros e se torna uma metáfora visual para a ausência, o vazio e a inevitabilidade da morte.

A arte, como é de se esperar de Chabouté, é magnífica. Seus traços detalhados, expressivos e ao mesmo tempo minimalistas transmitem com precisão a vastidão gelada do ambiente e a vulnerabilidade do homem que caminha por ela. O uso dramático do preto e branco, acompanhados de tons de cinza e marrom, reforça a tensão e o contraste entre a vida e a morte, o calor e o frio, o corpo e a natureza. Cada página é uma pintura congelada no tempo.

Trata-se de uma experiência de leitura intensa, quase sensorial, que exige do leitor atenção e entrega. Para quem está acostumado com estruturas mais tradicionais dos quadrinhos — com diálogos constantes, ação ou reviravoltas —, a obra pode parecer árida. Mas para aqueles que buscam algo diferente, profundo e visualmente arrebatador, este é um quadrinho que permanece na memória muito tempo depois da última página.

A edição da Pipoca & Nanquim está à altura da obra: capa dura, papel offset de alta gramatura, formato 21x28 cm, acabamento primoroso, tradução sensível (assinada por Aline Zouvi), várias páginas com artes extras no final e mais uma prova do cuidado da editora em trazer ao país grandes autores dos quadrinhos contemporâneos europeus.

Acender uma Fogueira é mais um acerto nesse catálogo — um quadrinho que, apesar de gelado em sua temática, queima lentamente dentro do leitor.


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