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Entre a honra e a loucura: a violência doentia de Shigurui – Frenesi da Morte Vol. 2 (2025, Pipoca & Nanquim)


Em ShiguruiFrenesi da Morte Vol. 2, Takayuki Yamaguchi continua a construir um dos mangás mais brutais e hipnóticos já produzidos sobre a era dos samurais. Publicado no Brasil pela Pipoca & Nanquim em edição caprichada — com sobrecapa, marcados de página, papel de alta gramatura, extras e glossário histórico — o volume dá sequência à espiral de violência, honra e loucura que marcou o início da série.

A história se passa durante o início do período Edo (1603-1868), quando a paz imposta pelo xogunato Tokugawa convive com a decadência moral e o fanatismo dos guerreiros sem guerra. Nesse cenário, o dojo Kogan-ryu é o palco da rivalidade entre dois discípulos: Fujiki Gennosuke, o herdeiro legítimo, e Irako Seigen, o forasteiro talentoso que desafia o mestre e ameaça toda a hierarquia. O volume 2 aprofunda essa disputa, mostrando o quanto o orgulho e o desejo de ascensão podem destruir o código de honra que sustenta o mundo samurai. E deixa ainda mais explícito o quão repulsivo é o personagem Kogan, mestre do dojo que alterna momentos de lucidez e demência, porém sem jamais perder a sua técnica invejável.

A narrativa, inspirada no romance Duelo Diante do Senhor no Castelo de Suruga de Norio Nanjo, é um retrato cruel do Japão feudal. Yamaguchi desenha com precisão anatômica e uma violência quase ritual. Seus traços combinam o hiper-realismo grotesco do ero-guro japonês com a plasticidade cinematográfica de um Kurosawa pervertido por pesadelos. Cada combate é uma coreografia de dor e beleza — músculos em tensão, olhos rasgados, corpos dilacerados com um cuidado quase clínico.



Há algo profundamente simbólico na forma como o autor retrata o corpo: ele é o campo de batalha onde a tradição e o desejo colidem. A mutilação, o sangue e o erotismo não são apenas choque: são instrumentos de exposição da hipocrisia e da degeneração moral que corroem aquele tempo. Shigurui não é um mangá sobre espadas, mas sobre o preço de viver em um sistema onde a honra é mais valiosa que a vida.

O impacto visual e narrativo é devastador. A tensão entre Gennosuke e Irako alcança um clímax silencioso neste segundo volume, carregado de presságios e obsessões. O ritmo lento e quase contemplativo — interrompido por explosões súbitas de violência — transforma a leitura em uma experiência sensorial e perturbadora.

A edição da Pipoca & Nanquim reforça o caráter de obra de arte: páginas densas, acabamento de colecionador e um glossário que ajuda a compreender o contexto histórico. Ler Shigurui – Frenesi da Morte é mergulhar em um Japão onde o Bushido, o lendário código de honra dos samurais, perdeu a pureza e restaram apenas corpos mutilados e espíritos quebrados.

Um mangá que não busca agradar, mas marcar. E o faz com lâmina afiada.


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