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O amor como prisão: Tom King desconstrói o romance em Amor Eterno Vol. 1 (2025, Taverna do Rei)


Há algo de profundamente inquietante em Amor Eterno Vol. 1. E é justamente esse desconforto que a torna uma das HQs mais instigantes publicadas no Brasil em 2025. Sob a aparência de uma homenagem aos quadrinhos românticos dos anos 1950 e 1960, o roteirista Tom King e a artista Elsa Charretier constroem uma fábula sobre aprisionamento, repetição e identidade — um drama metafísico disfarçado de história de amor.

A série nasce de uma provocação ousada: o que acontece quando os clichês de um gênero construído para confortar se tornam um ciclo de tortura? King, conhecido por obras como Senhor Incrível, Visão e sua aclamada fase em Batman, transporta para o universo do romance suas obsessões centrais: trauma, memória e o peso dos papéis que desempenhamos. Aqui, o amor não é refúgio, mas uma prisão emocional e narrativa.

A protagonista, Joan Peterson, está condenada a viver infinitas variações do mesmo enredo: ela se apaixona, sofre, morre ou desperta — e então tudo recomeça, em outro tempo, com outro homem, em outro cenário. O ciclo se repete como um castigo mitológico, uma espécie de “purgatório do amor”, em que a mulher romântica está presa à fantasia da paixão perfeita. Joan encarna o destino de incontáveis heroínas das revistas sentimentais do passado, mas, diferente delas, começa a perceber a artificialidade de sua existência. Sua luta é tanto interna quanto estrutural: romper o roteiro que dita quem ela deve amar e o que deve sentir.



Essa dimensão metalinguística é o coração da obra. Tom King não está apenas revisitando o gênero romântico, mas o desmontando por dentro, expondo seus mecanismos e suas contradições. A HQ reflete sobre como a cultura popular moldou a ideia do amor feminino como entrega, sofrimento e eternidade, e como essa promessa se torna uma forma de aprisionamento simbólico. O “amor eterno”, afinal, é uma sentença, não um ideal.

A arte de Elsa Charretier é essencial para esse jogo. Inspirada por Darwyn Cooke, Bruce Timm e pela estética publicitária da era de ouro dos quadrinhos, ela traduz o artifício visual das revistas antigas com uma elegância moderna. Cada arco de Joan apresenta um novo estilo, um novo enquadramento, uma nova paleta — mas o olhar da protagonista, sempre entre o espanto e o reconhecimento, denuncia a repetição. O resultado é um espetáculo visual e conceitual, em que forma e conteúdo se entrelaçam de maneira impecável.

O ritmo narrativo é deliberadamente hipnótico. King prefere a sugestão à explicação, a repetição à progressão linear. Isso pode frustrar quem busca respostas concretas, mas é justamente essa circularidade que dá sentido à experiência. Amor Eterno é um loop narrativo, um espelho do próprio leitor, condenado a revisitar as mesmas tramas e promessas em busca de um final que nunca vem.

A edição brasileira da Taverna do Rei vem com 136 páginas em papel couchê, capa com orelhas e um acabamento que ressalta o tom melancólico da HQ. O cuidado gráfico reforça a sensação de estar manuseando algo atemporal, uma obra que parece vir de outra era, mas que fala diretamente ao presente.

Amor Eterno Vol. 1 é uma história sobre amor, sim — mas, acima de tudo, sobre o desejo de escapar de um destino que outros escreveram. É uma reflexão sobre o poder das narrativas e sobre como elas moldam, limitam e, às vezes, aprisionam quem somos e o que sentimos.

Talvez o amor eterno não exista. Mas esta HQ prova que algumas histórias são impossíveis de esquecer.

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