O horror mais brutal de Junji Ito não vem dos monstros, mas de um homem que não consegue ser “humano”. O mangaká japonês adapta Declínio de um Homem, romance de 1948 de Osamu Dazai, e leva ao limite um desespero que já era absoluto no original.
O livro de Dazai é um pilar da literatura japonesa moderna: memórias que acompanham Yozo Ohba da infância ao colapso, entre máscaras sociais e tentativas falhas de pertencimento. Ito, herdeiro do horror psicológico e mestre em fazer o grotesco revelar o ordinário, se aproxima do texto com reverência — mas não com timidez. Ele conserva a espinha dorsal confessional e a mergulha em um fluxo visual que alterna realismo cru e pesadelos simbólicos, como assombrações que são menos fantasmas externos e mais emanações do próprio Yozo.
A trajetória de Yozo Ohba é uma sequência de disfarces. O “palhaço” que faz graça para sobreviver à presença dos outros; o jovem que se perde em prazeres autodestrutivos; o adulto que tenta habitar papéis (amante, marido, artista) como quem veste roupas emprestadas. Ito enfatiza cada etapa com cenas que colam na retina: festas que apodrecem no último quadro, corpos que se dissolvem na página como se o papel não suportasse o peso da culpa, e uma Tóquio do pós-guerra que parece sempre amanhecer com cheiro de cinzas. O resultado é um melodrama sombrio em que o horror não é um susto, mas um estado de espírito.
Entre as releituras literárias de Junji Ito, Declínio de um Homem é a mais ambiciosa: um volume único com mais de 600 páginas que reafirma seu alcance para além do terror de entidades e maldições. A obra expande a circulação da obra de Osamu Dazai para leitores de mangá e recoloca o autor no debate contemporâneo sobre saúde mental, máscara social e performatividade — sem romantizar a dor. Para quem acompanha Ito, é um marco que mostra seu vocabulário gráfico a serviço de um texto alheio, preservando a voz original e, ao mesmo tempo, traduzindo-a para um idioma de imagens que respira culpa, vergonha e vazio. No Brasil, a JBC publicou Declínio de um Homem em volume único, capa dura, com 616 páginas, sobrecapa e marcador de páginas.
Junji Ito não “ilustra” Osamu Dazai: ele o traduz para um regime sensorial onde cada traço é um sintoma. Ler esta adaptação é encarar que, às vezes, o terror não está do lado de fora — ele é o negativo que revela nossa imagem quando a luz falha.
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