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Enquanto você celebra o Wrapped, o Spotify continua punindo quem faz música


O Spotify transformou radicalmente a forma como ouvimos música. Isso é inegável. O acesso instantâneo a praticamente tudo que já foi gravado parece, à primeira vista, um paraíso para qualquer fã. Mas, conforme a plataforma cresceu, ficou cada vez mais claro que esse modelo esconde uma série de distorções que têm impacto profundo, e muitas vezes nocivo, na indústria musical. O discurso da democratização convive com uma estrutura que remunera mal, concentra ganhos e transforma arte em estatística.

O lançamento do Spotify Wrapped 2025 deixa tudo isso ainda mais evidente. Todos os anos, o Wrapped transforma o hábito musical do usuário em um espetáculo de dados: minutos ouvidos, artistas mais tocados, gêneros, humor do dia, “idade musical”. Um festival de números que viraliza nas redes, cria microcelebridades temporárias e faz cada assinante se sentir parte de uma narrativa maior. Mas enquanto o Wrapped celebra quem escuta, ele silencia quem faz. O lado luminoso criado para os consumidores contrasta com a sombra onde vivem os artistas, especialmente os independentes.

O modelo de remuneração do Spotify é uma das engrenagens mais problemáticas dessa história. Diferente de um pagamento por reprodução, a plataforma opera com uma lógica de stream-share: todo o dinheiro arrecadado no mês entra numa única caixa e é distribuído de acordo com a fatia de reproduções de cada artista em relação ao volume total da plataforma. Isso significa que, mesmo quando um artista acumula números expressivos, sua remuneração depende da proporção entre seus plays e os bilhões de plays puxados por superstars globais. É uma corrida em que poucos competidores largam na frente, e quase ninguém os alcança.

O resultado é um mercado profundamente desigual. Artistas de nicho, independentes ou com público fiel mas não massivo raramente conseguem extrair desse modelo algo que permita viver de sua arte. Mesmo quem atinge milhões de reproduções enfrenta repasses que, depois da divisão entre produtores, selos, distribuidores e intermediários, mal cobrem custos básicos. A ideia de que o streaming seria a grande tábua de salvação da música esbarra na realidade: ele funciona muito bem para quem já é gigante. Para todo o resto, é um sistema hostil.

E não para por aí. O ecossistema do Spotify é vulnerável a fraudes, bots, playlists artificiais e uploads falsos que drenam dinheiro do fundo comum, diminuindo ainda mais o valor destinado a artistas reais. Some a isso o papel central do algoritmo — que privilegia faixas curtas, refrões rápidos, introduções instantâneas — e temos um ambiente criativo cada vez mais moldado por métricas, não por expressão artística.

É claro que existem aspectos positivos. O streaming abriu caminhos para artistas alcançarem ouvintes em países onde jamais seriam distribuídos. Tornou catálogos antigos relevantes novamente. Facilitou descobertas. Mas esses benefícios convivem com um modelo que desvaloriza a música e precariza quem vive dela. A troca é desigual: o público ganhou acesso mas os artistas perderam controle, receita e espaço criativo.

O Wrapped 2025, com seu brilho colorido e seu apelo nostálgico, é o símbolo perfeito dessa contradição. Ele transforma o consumo musical em festa, mas ignora os alicerces frágeis que sustentam essa celebração. Enquanto os usuários comemoram seus números, os artistas lidam com os efeitos de uma plataforma que paga pouco, concentra muito e organiza o mercado em torno de critérios que nada têm a ver com arte.

No fim das contas, o Spotify revolucionou o mundo da música, mas essa revolução tem um preço alto. E quem paga não são os ouvintes, mas sim quem cria.


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