Hunky Dory (1971) é o disco em que David Bowie, definitivamente, encontra a própria voz. Não apenas no sentido literal, mas artístico, conceitual e estético. O álbum deixa para trás as tentativas ainda fragmentadas do fim dos anos 1960 e aponta com clareza para o artista que, poucos meses depois, redefiniria os limites do rock com The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars (1972).
Diferente do impacto visual e do peso elétrico que marcariam Ziggy, Hunky Dory é, acima de tudo, um disco guiado pelo piano. As composições se apoiam fortemente nesse instrumento, criando uma atmosfera mais íntima, teatral e, ao mesmo tempo, sofisticada. É um álbum de canções no sentido mais clássico do termo, mas que já carrega em suas entrelinhas a inquietação artística e a ambiguidade que se tornariam marcas registradas de Bowie.
Logo na abertura com “Changes”, Bowie apresenta o tema central do disco: transformação. A canção é quase um manifesto, tanto lírico quanto musical, sobre a necessidade de romper padrões e aceitar o movimento constante da identidade. Não por acaso, tornou-se uma de suas músicas mais emblemáticas. “Oh! You Pretty Things” amplia esse discurso, misturando melodia pop acessível com referências à teoria da evolução, algo que Bowie exploraria de forma mais explícita em trabalhos posteriores.
“Life on Mars?” é o coração emocional de Hunky Dory. Grandiosa, melancólica e cinematográfica, a faixa combina uma progressão harmônica sofisticada com uma interpretação vocal carregada de emoção. É uma daquelas músicas que sintetizam a capacidade única de David Bowie de unir ambição artística e apelo popular sem soar pretensioso.
O disco também revela um Bowie profundamente interessado em cultura, arte e referências pessoais. “Song for Bob Dylan” e “Andy Warhol” funcionam como homenagens enviesadas, mais reflexivas do que reverenciais. Já “Kooks”, escrita para seu filho recém-nascido, expõe um lado raramente afetivo do artista, equilibrando ternura e excentricidade.
Em faixas como “Quicksand”, surgem as inquietações filosóficas e espirituais que Bowie vinha amadurecendo: ocultismo, niilismo, identidade e alienação aparecem de forma densa, quase confessional. “Queen Bitch”, por sua vez, aponta diretamente para o glam rock que estava prestes a explodir, com guitarras mais agressivas e uma energia que dialoga abertamente com o Velvet Underground. O encerramento com “The Bewlay Brothers” é enigmático, fragmentado e introspectivo, uma escolha perfeita para fechar um álbum que trata, essencialmente, de transições internas. A música soa como um epílogo nebuloso, deixando mais perguntas do que respostas.
Embora Hunky Dory não tenha sido um grande sucesso comercial imediato, sua importância histórica é imensa. É o álbum em que David Bowie deixa de ser apenas um talento promissor para se tornar um artista plenamente consciente de suas possibilidades. Aqui, ele experimenta, refina sua escrita, constrói personagens e testa ideias que ganhariam forma definitiva no disco seguinte.
Hunky Dory não é apenas um “pré-Ziggy”, mas uma obra essencial por mérito próprio. Um álbum elegante, ousado e atemporal, que mostra David Bowie no exato momento em que criatividade, ambição e identidade finalmente se alinham. Para quem acompanha sua discografia, este é um daqueles discos que não apenas merecem ser ouvidos: merecem ser revisitados, com atenção, repetidas vezes.
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